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São Paulo, terça-feira, 28 de outubro de 2003

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Chave para "A Mulher Que Acreditava Ser Presidente dos Estados Unidos" está na esquizofrenia induzida no espectador

Português petulante ataca EUA e "terrinha"

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO

Com "A Mulher Que Acreditava Ser Presidente dos Estados Unidos", não há meio termo: ou o espectador adora, ou detesta. Numa das sessões em que o filme foi exibido na Mostra, não foram poucos os espectadores que saíram do cinema, batendo a porta, raivosos. Enquanto isso, os outros que ficaram se estrebuchavam de rir.
É melhor ficar na sala. O filme é uma experiência única, como cinema e como comentário crítico. Chamá-lo de comédia ainda é pouco: trata-se de uma farsa absolutamente delirante, intercalando sem ordem e sem nexo uma série de tradições cinematográficas "leves", sobretudo americanas: do musical à "screwball comedy". O filme também flerta com o teatro do absurdo e assume francamente o ridículo como força de construção e demolição.
É difícil resumir a história, mas vamos lá. Começa na rua Washington, em Lisboa. Em seguida, estamos já na Casa Branca. Governa os Estados Unidos uma perua loira e histérica, cujo primeiro-marido passa os dias bêbado na cama. Também a cama é o lugar preferido da primeira-avó, amante de um bom baseado, que ela enrola em sedas ilustradas com a bandeira norte-americana.
Chegam a secretária de Estado, a vice-presidente, a chefe das Forças Armadas, as agentes do FBI -os EUA são governados por mulheres de perucas espalhafatosas e vestidos reluzentes.
O que vem em seguida é uma série de cenas impagáveis que satirizam a política e a vida norte-americana a partir dos clichês que nós todos acumulamos a respeito dos EUA. "A Mulher que Acreditava Ser a Presidente dos Estados Unidos" é um dos filmes mais petulantes dos últimos tempos. Em Lisboa, uma revista humorística chegou mesmo a cogitar que, por causa dele, Portugal poderia ser enquadrado pelo presidente Bush entre os países do Eixo do Mal.
Mas a crítica aos Estados Unidos só funciona porque o diretor apronta ao mesmo tempo um ataque impiedoso a Portugal. A própria estrutura do filme se ergue com vistas a atingir os dois alvos. Os contrastes -na forma, no gesto e na palavra- entre os chavões da cultura americana e as tipicidades do comportamento português, entre os hinos patrióticos em inglês e o fado tristonho, entre a fantasia de um superpoder mundial e as picuinhas de uma vida provinciana, entre a tradição do filme hollywoodiano e a criação de uma mise-en-scène inédita no cinema da "terrinha" reforçam o duplo bombardeamento.
É também um filme bastante bem realizado do ponto de vista cinematográfico. João Botelho é um dos melhores diretores europeus, dono de uma obra consolidada e, aliás, bastante austera e intelectual, como em "Conversa Acabada" e "Tempos Difíceis". Neste novo filme, sem deixar de recorrer a toda a sua cultura de cinema, ele simplesmente desbundou, com ajuda de um formidável elenco de atrizes portuguesas.
Se no conjunto o filme é memorável, no detalhe deixa a desejar. O roteiro privilegia demasiadamente a "gag" em detrimento da narrativa. Isso exige do filme um grau de invenção acima de suas forças. Às vezes achamos tudo genial, às vezes que se perdeu na zombaria mais rastaquera. Mas essa esquizofrenia induzida no espectador, ridicularizado ele também em seu anti-americanismo, talvez seja a chave da obra.


A Mulher Que Acreditava Ser Presidente dos Estados Unidos   


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