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São Paulo, terça-feira, 28 de outubro de 2003

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BERNARDO CARVALHO

Orientalismo

A 5ª Bienal de Arquitetura de São Paulo, que termina domingo, é uma boa ocasião para lembrar que, desde o Egito antigo, os arquitetos costumam dar bons personagens de parábolas e contos morais. Tanto quanto os sonhos megalômanos dos antigos faraós, o idealismo de redesenhar a vida e a sociedade pela arquitetura moderna é um tema de fábula por excelência, cuja moral está aí para quem quiser ver.
Segundo um relatório da ONU divulgado no início do mês, cerca de um bilhão de pessoas vive em favelas, um sexto da população mundial. O número deve dobrar até 2030. Diante dessa perspectiva, seria lógico que os maiores arquitetos do mundo estivessem quebrando a cabeça para chegar a soluções inteligentes para o caos, em vez de se contentar com a reprodução muito bem remunerada de uma mentalidade empresarial, erguendo monumentos e museus onde menos se precisa deles. Mas os favelados não são bons pagadores. O Estado social faz parte de um mundo aparentemente ultrapassado. E o século 20 mostrou, para quem ainda não tinha entendido, que nem tudo depende da arquitetura.
É exemplar o caso de um arquiteto egípcio de quem, não por acaso, você provavelmente nunca ouviu falar. Fathy Hassan (1900-89) dedicou a vida a fazer arquitetura para os pobres. Não foi apenas um dos arquitetos mais interessantes do século 20, foi também um dos mais paradoxais e contraditórios.
Na segunda metade do século 19, o Egito afundava em dívidas. Em 1882, a título de principal credor (ao lado da França) e sob o pretexto de assegurar os seus interesses, a Inglaterra invadiu o Cairo. A ocupação colonial durou 70 anos. Hassan fez parte da intelectualidade egípcia formada pela polarização entre os dois mundos, educada sob a influência da cultura européia e dos movimentos nacionalistas de resistência à ocupação.
O resultado foi uma combinação peculiar, e muitas vezes conflitante, entre modernidade e tradição, Ocidente e Oriente. Se por um lado Hassan endossava as teorias da arquitetura moderna e até certo ponto a idéia do arquiteto como uma espécie de demiurgo capaz de recriar as relações sociais pela arquitetura, por outro acreditava que essa recriação só podia vir da retomada das tecnologias da terra, de uma releitura das tradições locais acumuladas ou perdidas ao longo de séculos: "Nem a tradição nem a modernidade devem ser falseadas".
Em teoria, a proposta de habitação popular como revalorização de técnicas próprias das culturas locais, que culminou com o projeto abandonado de Nova Gourna (1945-47), é uma das mais belas e bem-intencionadas da arquitetura moderna, anunciando uma preocupação à época inédita com um método de construção auto-sustentável e o uso de materiais naturais. O problema, como sempre, é a prática.
Em 1945, o governo egípcio decidiu remover o vilarejo de Gourna al-Gadida, próximo ao sítio arqueológico de Luxor. Os habitantes estavam pilhando os túmulos faraônicos do Vale dos Reis. Hassan já era conhecido pela maneira como reinterpretava em seus projetos elementos da tradição muçulmana, além de incorporar técnicas da arquitetura do deserto (dos núbios, povo do Egito meridional), como as cúpulas de tijolo de barro, e das construções medievais do Cairo, sobretudo os sofisticados sistemas de ventilação capazes de reduzir em até 15 graus a temperatura interna das casas, num país onde não é raro viver sob 50 graus centígrados.
No caso de Nova Gourna, o arquiteto fez questão de evitar a uniformidade, criando uma planta baixa irregular, com ênfase na variedade e na originalidade. Tratava os pobres com a mesma deferência com que projetava as casas de seus clientes ricos. O romantismo, porém, fez com que imaginasse a vida do camponês com uma pureza que o camponês já não tinha. Por mais que perseguisse o autêntico, por mais que acreditasse estar fazendo a arquitetura que melhor se adequava à região e àquela cultura, recuperando as tradições núbias, o idealismo de Hassan não lhe permitia aquilatar a aversão provocada pela associação entre o tijolo de barro e a pobreza. O tijolo de barro podia ser bom para a casa de ricos, intelectuais e artistas afinados com os preceitos do arquiteto, mas não para o pobre.
Nova Gouna não foi boicotada apenas pelo lobby da construção civil, que lucrava com o custo superior de obras que utilizavam material industrial, mas pelos próprios camponeses desalojados, que sonhavam com água encanada em vez de serem obrigados a se servir dos poços projetados pelo arquiteto para promover a tradicional vida comunitária tal qual ele a idealizava.
Nova Gourna nunca foi terminada. Acabou sendo remodelada pelo uso e pela realidade. Alguns dos atuais moradores cimentaram as janelas e o engenhoso sistema de ventilação e cobriram os pátios internos com puxadinhos. Quando as cúpulas de tijolo de barro começaram a ruir (o que estava previsto, assim como a sua reconstrução cíclica), muitos as substituíram por lajes de concreto, dando ao vilarejo-modelo um aspecto semelhante ao das favelas que o arquiteto tanto abominava. Fathy Hassan foi vítima da sua própria formação: em busca do autêntico, idealizou o Oriente como faria um ocidental.

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