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BERNARDO CARVALHO
Orientalismo
A 5ª Bienal de Arquitetura de
São Paulo, que termina domingo, é uma boa ocasião para
lembrar que, desde o Egito antigo,
os arquitetos costumam dar bons
personagens de parábolas e contos morais. Tanto quanto os sonhos megalômanos dos antigos
faraós, o idealismo de redesenhar
a vida e a sociedade pela arquitetura moderna é um tema de fábula por excelência, cuja moral está
aí para quem quiser ver.
Segundo um relatório da ONU
divulgado no início do mês, cerca
de um bilhão de pessoas vive em
favelas, um sexto da população
mundial. O número deve dobrar
até 2030. Diante dessa perspectiva, seria lógico que os maiores arquitetos do mundo estivessem
quebrando a cabeça para chegar
a soluções inteligentes para o
caos, em vez de se contentar com
a reprodução muito bem remunerada de uma mentalidade empresarial, erguendo monumentos e
museus onde menos se precisa deles. Mas os favelados não são bons
pagadores. O Estado social faz
parte de um mundo aparentemente ultrapassado. E o século 20
mostrou, para quem ainda não
tinha entendido, que nem tudo
depende da arquitetura.
É exemplar o caso de um arquiteto egípcio de quem, não por
acaso, você provavelmente nunca
ouviu falar. Fathy Hassan (1900-89) dedicou a vida a fazer arquitetura para os pobres. Não foi
apenas um dos arquitetos mais
interessantes do século 20, foi
também um dos mais paradoxais
e contraditórios.
Na segunda metade do século
19, o Egito afundava em dívidas.
Em 1882, a título de principal credor (ao lado da França) e sob o
pretexto de assegurar os seus interesses, a Inglaterra invadiu o Cairo. A ocupação colonial durou 70
anos. Hassan fez parte da intelectualidade egípcia formada pela
polarização entre os dois mundos,
educada sob a influência da cultura européia e dos movimentos
nacionalistas de resistência à ocupação.
O resultado foi uma combinação peculiar, e muitas vezes conflitante, entre modernidade e tradição, Ocidente e Oriente. Se por
um lado Hassan endossava as
teorias da arquitetura moderna e
até certo ponto a idéia do arquiteto como uma espécie de demiurgo
capaz de recriar as relações sociais pela arquitetura, por outro
acreditava que essa recriação só
podia vir da retomada das tecnologias da terra, de uma releitura
das tradições locais acumuladas
ou perdidas ao longo de séculos:
"Nem a tradição nem a modernidade devem ser falseadas".
Em teoria, a proposta de habitação popular como revalorização de técnicas próprias das culturas locais, que culminou com o
projeto abandonado de Nova
Gourna (1945-47), é uma das
mais belas e bem-intencionadas
da arquitetura moderna, anunciando uma preocupação à época
inédita com um método de construção auto-sustentável e o uso de
materiais naturais. O problema,
como sempre, é a prática.
Em 1945, o governo egípcio decidiu remover o vilarejo de Gourna
al-Gadida, próximo ao sítio arqueológico de Luxor. Os habitantes estavam pilhando os túmulos
faraônicos do Vale dos Reis. Hassan já era conhecido pela maneira como reinterpretava em seus
projetos elementos da tradição
muçulmana, além de incorporar
técnicas da arquitetura do deserto (dos núbios, povo do Egito meridional), como as cúpulas de tijolo de barro, e das construções medievais do Cairo, sobretudo os sofisticados sistemas de ventilação
capazes de reduzir em até 15
graus a temperatura interna das
casas, num país onde não é raro
viver sob 50 graus centígrados.
No caso de Nova Gourna, o arquiteto fez questão de evitar a
uniformidade, criando uma
planta baixa irregular, com ênfase na variedade e na originalidade. Tratava os pobres com a mesma deferência com que projetava
as casas de seus clientes ricos. O
romantismo, porém, fez com que
imaginasse a vida do camponês
com uma pureza que o camponês
já não tinha. Por mais que perseguisse o autêntico, por mais que
acreditasse estar fazendo a arquitetura que melhor se adequava à
região e àquela cultura, recuperando as tradições núbias, o idealismo de Hassan não lhe permitia
aquilatar a aversão provocada
pela associação entre o tijolo de
barro e a pobreza. O tijolo de barro podia ser bom para a casa de
ricos, intelectuais e artistas afinados com os preceitos do arquiteto,
mas não para o pobre.
Nova Gouna não foi boicotada
apenas pelo lobby da construção
civil, que lucrava com o custo superior de obras que utilizavam
material industrial, mas pelos
próprios camponeses desalojados,
que sonhavam com água encanada em vez de serem obrigados a se
servir dos poços projetados pelo
arquiteto para promover a tradicional vida comunitária tal qual
ele a idealizava.
Nova Gourna nunca foi terminada. Acabou sendo remodelada
pelo uso e pela realidade. Alguns
dos atuais moradores cimentaram as janelas e o engenhoso sistema de ventilação e cobriram os
pátios internos com puxadinhos.
Quando as cúpulas de tijolo de
barro começaram a ruir (o que
estava previsto, assim como a sua
reconstrução cíclica), muitos as
substituíram por lajes de concreto, dando ao vilarejo-modelo um
aspecto semelhante ao das favelas
que o arquiteto tanto abominava.
Fathy Hassan foi vítima da sua
própria formação: em busca do
autêntico, idealizou o Oriente como faria um ocidental.
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