|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/Narrativa
Livro de Xavier contrasta luxo com material resgatado do lixo
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os numerosos "raccontos" e "novellas" de Valêncio Xavier anteriormente publicados em jornais e
revistas aos poucos vão sendo
reunidos, como em "Rremembranças da Menina de Rua
Morta Nua e Outros Livros",
volume recém-lançado que
reúne sete dessas histórias.
Talvez pela condição mesma
de suas estranhas narrativas
que usam gravuras antigas e fotografias (a ponto de em alguns
casos quase prescindirem de
texto), o autor de "O Mez da
Grippe" sempre foi pródigo em
publicá-las no suporte mais volátil das páginas da imprensa,
provavelmente enxergando
maior proximidade entre sua
obra e a aparência gráfica da comunicação impressa, prorrogando assim sua existência
mais definitiva na forma de livro.
Exímio detetive do lixo visual
da cultura de massas, Xavier recupera imagens e palavras nesses contos (há neles considerável número de expressões caídas em desuso, como a "rremembranças" do título), antes
relegadas ao esquecimento público, apropriando-se e lhes arranjando novo lugar. Sua obsessiva insistência em publicar
quase que apenas em jornais
durante as décadas de 80 e 90
sugere certa ética da devolução,
a de devolver ao lixo o que no lixo foi recolhido, dada a fugaz
existência desse meio.
Arrancar do esquecimento,
entretanto, também é o que o
autor paulista radicado em Curitiba faz com a "menina de rua
morta nua" relembrada no conto que dá nome à coletânea.
Utilizando-se de trechos de telejornais como o "Aqui & Agora" e recortes de periódicos,
Xavier nos recorda do assassinato de uma menor de idade
ocorrido em 1993 no trem-fantasma de um parque de diversões barato de Diadema.
Num
processo de evocação da menina morta e esquecida, a narrativa devolve à vítima os atributos
humanos que lhe foram destituídos pelo crime e pelo olvido,
reinventando modernamente a
tradição da celebração fúnebre
por meio da nênia, ora de maneira entrecortada e "quebrando, via lembrança, via repetição, a banalização espetacular
da morte" promovida pela mídia sensacionalista e espetaculosa, no dizer de Flora Süssekind.
Todos os livros de Valêncio
Xavier têm como fio da meada
entre suas histórias essa abordagem pouco reconfortante da
morte e das perversidades do
sexo, numa potencialização superlativa de sua contigüidade
autoral com o universo da obra
de Dalton Trevisan, outro autor
cuja poética igualmente está
fundada nos descalabros do
convívio social entre anônimos. Assombrando os leitores
com seus personagens lúbricos
do facínora drama suburbano
do dia-a-dia, as relações entre o
Vampiro e o Frankenstein de
Curitiba tornam-se cada vez
mais evidentes e indissociáveis,
exigindo aprofundamento para
melhor compreendê-las em
sua complexidade siamesa.
Resta celebrar o cuidado da
edição e a capa de Raul Loureiro e Cláudia Warrak, desde já
uma das melhores do ano, e que
propõem um curioso contraste
entre o luxo e o material resgatado do lixo de que é feita a literatura de Valêncio Xavier.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da
Palavra) e "Hotel Hell" (Livros do Mal), entre outros.
RREMEMBRANÇAS DA MENINA DE RUA MORTA NUA E OUTROS LIVROS
Autor: Valêncio Xavier
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 38,50 (144 págs.)
Texto Anterior: Livros: Editora aposta em africanos e portugueses Próximo Texto: Crítica/Política: Obra tenta entender ação política de evangélicos Índice
|