São Paulo, sábado, 28 de outubro de 2006

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Crítica/Narrativa

Livro de Xavier contrasta luxo com material resgatado do lixo

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os numerosos "raccontos" e "novellas" de Valêncio Xavier anteriormente publicados em jornais e revistas aos poucos vão sendo reunidos, como em "Rremembranças da Menina de Rua Morta Nua e Outros Livros", volume recém-lançado que reúne sete dessas histórias.
Talvez pela condição mesma de suas estranhas narrativas que usam gravuras antigas e fotografias (a ponto de em alguns casos quase prescindirem de texto), o autor de "O Mez da Grippe" sempre foi pródigo em publicá-las no suporte mais volátil das páginas da imprensa, provavelmente enxergando maior proximidade entre sua obra e a aparência gráfica da comunicação impressa, prorrogando assim sua existência mais definitiva na forma de livro.
Exímio detetive do lixo visual da cultura de massas, Xavier recupera imagens e palavras nesses contos (há neles considerável número de expressões caídas em desuso, como a "rremembranças" do título), antes relegadas ao esquecimento público, apropriando-se e lhes arranjando novo lugar. Sua obsessiva insistência em publicar quase que apenas em jornais durante as décadas de 80 e 90 sugere certa ética da devolução, a de devolver ao lixo o que no lixo foi recolhido, dada a fugaz existência desse meio.
Arrancar do esquecimento, entretanto, também é o que o autor paulista radicado em Curitiba faz com a "menina de rua morta nua" relembrada no conto que dá nome à coletânea. Utilizando-se de trechos de telejornais como o "Aqui & Agora" e recortes de periódicos, Xavier nos recorda do assassinato de uma menor de idade ocorrido em 1993 no trem-fantasma de um parque de diversões barato de Diadema.
Num processo de evocação da menina morta e esquecida, a narrativa devolve à vítima os atributos humanos que lhe foram destituídos pelo crime e pelo olvido, reinventando modernamente a tradição da celebração fúnebre por meio da nênia, ora de maneira entrecortada e "quebrando, via lembrança, via repetição, a banalização espetacular da morte" promovida pela mídia sensacionalista e espetaculosa, no dizer de Flora Süssekind.
Todos os livros de Valêncio Xavier têm como fio da meada entre suas histórias essa abordagem pouco reconfortante da morte e das perversidades do sexo, numa potencialização superlativa de sua contigüidade autoral com o universo da obra de Dalton Trevisan, outro autor cuja poética igualmente está fundada nos descalabros do convívio social entre anônimos. Assombrando os leitores com seus personagens lúbricos do facínora drama suburbano do dia-a-dia, as relações entre o Vampiro e o Frankenstein de Curitiba tornam-se cada vez mais evidentes e indissociáveis, exigindo aprofundamento para melhor compreendê-las em sua complexidade siamesa.
Resta celebrar o cuidado da edição e a capa de Raul Loureiro e Cláudia Warrak, desde já uma das melhores do ano, e que propõem um curioso contraste entre o luxo e o material resgatado do lixo de que é feita a literatura de Valêncio Xavier.


JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra) e "Hotel Hell" (Livros do Mal), entre outros.

RREMEMBRANÇAS DA MENINA DE RUA MORTA NUA E OUTROS LIVROS    
Autor: Valêncio Xavier
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 38,50 (144 págs.)


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