São Paulo, quinta-feira, 28 de novembro de 2002

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CINEMA

"Amarelo Manga", dirigido por Cláudio Assis, é desenvolvimento do curta-metragem "Texas Hotel"

Vencedor do Festival de Brasília renova estética dos desvalidos

JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

O júri do 35º Festival de Cinema de Brasília pode ter errado no varejo, mas acertou no atacado: "Amarelo Manga" foi o grande filme do evento.
O longa-metragem de Cláudio Assis é um desenvolvimento de seu curta "Texas Hotel", que competiu em Brasília em 1999.
Mas aquilo que, no curta, parecia apenas uma sucessão gratuita de aberrações ambientadas num cortiço de Recife integra-se, no longa, a uma narrativa articulada e plena de sentido.
Os estereótipos grotescos de "Texas Hotel" viraram, em "Amarelo Manga", personagens vivos e cheios de matizes. O próprio hotel, cenário único do curta, é agora apenas o núcleo principal da história, que envolve um punhado de párias sociais.
Durante o festival, falou-se muito em Aluísio Azevedo, Lima Barreto e Plínio Marcos para definir a filiação do filme a uma vertente da literatura brasileira que dá vez e voz aos humilhados e ofendidos da sociedade.
A aproximação mais pertinente talvez seja mesmo com Plínio Marcos (mais presente em "Amarelo Manga" do que na versão cinematográfica de sua peça "Dois Perdidos numa Noite Suja").
Assim como na obra do dramaturgo, no filme de Cláudio Assis os miseráveis não são coitadinhos à espera da piedade alheia, mas seres plenos de vida, dispostos a matar ou morrer para realizar seus desejos e pulsões.
É o desejo que comanda a ação, muitas vezes destrambelhada, dessas criaturas, do empregado homossexual do hotel (Matheus Nachtergaele) ao açougueiro adúltero (Chico Diaz), da solitária dona de boteco (Leona Cavalli) ao padre sem igreja, da mulher crente (Dira Paes) ao cinquentão pervertido (Jonas Bloch) que desfila numa velha Mercedes.
Se continua dando atenção especial aos aspectos sórdidos dessas existências à margem, se privilegia ainda os fluidos e dejetos humanos, Cláudio Assis desbastou muito do que havia de gratuito em "Texas Hotel".
Ainda há certos excessos: exibe-se em minúcias o abate de um boi, uma mulher madura (Conceição Camarotti) se masturba com uma máscara de inalação.
Mas esses extremos se diluem no corpo da narrativa, que entrelaça admiravelmente uma porção de episódios isolados a duas histórias centrais: a do açougueiro adúltero e a do assédio do homem da Mercedes amarela.

Humanização da miséria
Há uma tensão harmoniosa, se assim se pode dizer, entre a crueza do universo apresentado e a elegância da câmera e da fotografia de Walter Carvalho. Não se trata de estetização da miséria -algo que sugere distanciamento e conforto na recepção das imagens-, mas uma espécie de humanização dos miseráveis por meio da estética. O filme incomoda e eleva ao mesmo tempo.
Um dos pontos-chave da expressividade plástica de "Amarelo Manga" é, como sugere seu próprio título, o uso da cor -sobretudo das cores primárias, que estabelecem uma corrente analógica a sublinhar as paixões.
O amarelo da velha Mercedes que percorre as ruas da velha Recife é o mesmo dos pêlos púbicos da dona do bar (mostrados num plano digno de antologia do cinema erótico), estabelecendo uma atração pré-verbal, pré-racional, entre os dois personagens.
Do mesmo modo, o vermelho do sangue dos bois esquartejados pelo açougueiro parece antecipar o desfecho rubro e violento de seu amor adúltero.
Haveria ainda muito a dizer sobre a montagem e a vibrante trilha sonora, mas o espaço é curto.
Cabe lamentar que, na premiação de Brasília, não tenham sido reconhecidos os grandes trunfos de "Desmundo": a interpretação luminosa de Simone Spoladore e a magnífica direção de arte de Adrian Cooper.


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