São Paulo, terça-feira, 28 de novembro de 2006

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análise

Ator conferiu estatuto trágico à canalhice

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Jece Valadão personificou como ninguém o cafajeste no cinema brasileiro. Em sua atuação enxuta e áspera, que tirava proveito de cada silêncio, de cada olhar, resmungo, esgar irônico ou baforada de fumaça de cigarro, encarnou todas as (más) qualidades do machão brasileiro: o desprezo pelas mulheres a não ser como objeto de prazer, a vulgaridade, a rudeza.
A anos-luz da caricatura fácil em que tantos outros caíram, compôs o personagem com tal empenho e sofisticação que chegou a lhe dar um estatuto trágico, que fala de uma solidão metafísica e irredutível. O sedutor canalha de "Os Cafajestes", o bicheiro de "Boca de Ouro" (filmes que o próprio Valadão produziu), o cafetão de "Navalha na Carne", o policial truculento de "Eu Matei Lúcio Flávio" são todos, de alguma maneira, homens solitários, atormentados e, por paradoxal que pareça, impotentes. Talvez seja por isso que, mesmo exibindo os piores defeitos humanos, eles inspiram no espectador uma incômoda empatia, ainda que eventualmente contrabalançada pela repulsa.
Valadão, como homem de cinema (ator e produtor), nunca teve o estofo intelectual ou político de seus contemporâneos do cinema novo, mas tinha o talento para a comunicação com o grande público que faltava aos artífices do movimento. Era um ator instintivo, dotado de uma espécie de inteligência do corpo que o levava sempre ao gesto certeiro, ao tom exato, à expressão mais contundente. Por isso trabalhou tão bem sob a batuta de antípodas seus, como Ruy Guerra, Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, que lhe deu em "A Idade da Terra" o último papel que alguém esperaria vê-lo encarnar: o de um trabalhador humilde que, no plano da alegoria, aparece como uma espécie de Cristo de nosso tempo.
Glauber antecipava assim a virada que o ator daria alguns anos depois, quando se tornou evangélico e passou a renegar seu currículo de canalhices. A "persona" de cafajeste havia se tornado uma armadilha, e Valadão fugiu dela da maneira mais espetacular e inesperada possível: passando a viver o personagem oposto, do carola arrependido, papel que no fundo nunca convenceu ninguém, dada a própria dose de ironia com que o ator o ostentava na chamada vida real. Quem quiser tirar a prova, assista ao belo documentário "O Evangelho Segundo Jece Valadão", que o cineasta Joel Pizzini realizou sobre o artista para o Canal Brasil, e que certamente será reprisado agora.
O fato é que, por conta da sua transformação em "crente", muitos acreditaram acabada a carreira do ator. Mas sua atuação na minissérie "Os Filhos do Carnaval" mostrou que estavam enganados. O velho cafajeste -sem o qual não existiria Paulo César Peréio, que é uma espécie de superação dialética de Valadão- estava muito vivo. Foi seu belo, e auto-referente, canto do cisne.


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