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análise
Ator conferiu estatuto trágico à canalhice
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Jece Valadão personificou como ninguém o cafajeste no
cinema brasileiro. Em sua
atuação enxuta e áspera,
que tirava proveito de cada silêncio, de cada olhar,
resmungo, esgar irônico
ou baforada de fumaça de
cigarro, encarnou todas as
(más) qualidades do machão brasileiro: o desprezo
pelas mulheres a não ser
como objeto de prazer, a
vulgaridade, a rudeza.
A anos-luz da caricatura
fácil em que tantos outros
caíram, compôs o personagem com tal empenho e
sofisticação que chegou a
lhe dar um estatuto trágico, que fala de uma solidão
metafísica e irredutível. O
sedutor canalha de "Os
Cafajestes", o bicheiro de
"Boca de Ouro" (filmes
que o próprio Valadão produziu), o cafetão de "Navalha na Carne", o policial
truculento de "Eu Matei
Lúcio Flávio" são todos, de
alguma maneira, homens
solitários, atormentados e,
por paradoxal que pareça,
impotentes. Talvez seja
por isso que, mesmo exibindo os piores defeitos
humanos, eles inspiram
no espectador uma incômoda empatia, ainda que
eventualmente contrabalançada pela repulsa.
Valadão, como homem
de cinema (ator e produtor), nunca teve o estofo
intelectual ou político de
seus contemporâneos do
cinema novo, mas tinha o
talento para a comunicação com o grande público
que faltava aos artífices do
movimento. Era um ator
instintivo, dotado de uma
espécie de inteligência do
corpo que o levava sempre
ao gesto certeiro, ao tom
exato, à expressão mais
contundente. Por isso trabalhou tão bem sob a batuta de antípodas seus, como
Ruy Guerra, Nelson Pereira dos Santos e Glauber
Rocha, que lhe deu em "A
Idade da Terra" o último
papel que alguém esperaria vê-lo encarnar: o de um
trabalhador humilde que,
no plano da alegoria, aparece como uma espécie de
Cristo de nosso tempo.
Glauber antecipava assim a virada que o ator daria alguns anos depois,
quando se tornou evangélico e passou a renegar seu
currículo de canalhices. A
"persona" de cafajeste havia se tornado uma armadilha, e Valadão fugiu dela
da maneira mais espetacular e inesperada possível:
passando a viver o personagem oposto, do carola
arrependido, papel que no
fundo nunca convenceu
ninguém, dada a própria
dose de ironia com que o
ator o ostentava na chamada vida real. Quem quiser tirar a prova, assista ao
belo documentário "O
Evangelho Segundo Jece
Valadão", que o cineasta
Joel Pizzini realizou sobre
o artista para o Canal Brasil, e que certamente será
reprisado agora.
O fato é que, por conta
da sua transformação em
"crente", muitos acreditaram acabada a carreira do
ator. Mas sua atuação na
minissérie "Os Filhos do
Carnaval" mostrou que estavam enganados. O velho
cafajeste -sem o qual não
existiria Paulo César Peréio, que é uma espécie de
superação dialética de Valadão- estava muito vivo.
Foi seu belo, e auto-referente, canto do cisne.
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