São Paulo, quarta-feira, 28 de novembro de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Urnas funerárias

Em duas partes do mundo, no mesmo dia, dois fenômenos "democráticos" serão a minha desgraça pessoal

NO PRÓXIMO domingo, dia 2 de dezembro, dois fenômenos "democráticos", em duas partes do mundo, vão contribuir para o meu descrédito público.
Na Rússia, as eleições parlamentares, com toda a certeza, vão entregar vitória folgada ao partido Rússia Unida, de Vladimir Putin. Conseqüências? Em março, quando Putin deixar o cargo e colocar no lugar da Presidência uma marionete qualquer (provavelmente, o atual primeiro-ministro, Viktor Zubkov), será ele, Putin, o novo primeiro-ministro, continuando a manipular o Kremlin e a fechar, ainda mais, a sociedade e a política russas.
Na Venezuela, um referendo a 69 emendas constitucionais pode permitir que Hugo Chávez fique no poder até o fim da vida, ao mesmo tempo em que garante ao caudilho o controle sobre governantes estaduais e regionais. Sem esquecer, claro, a transformação do Exército em força policial abertamente revolucionária e a possibilidade do presidente declarar "estados de emergência" por períodos indeterminados, eufemismo para o autoritarismo em que o país passará a viver.
Dois acontecimentos, em duas partes do mundo, curiosamente no mesmo dia, que serão a minha desgraça pessoal. Sei do que falo. De vez em quando, em conversas públicas, critico Putin e Chávez com os piores adjetivos. O povo em volta cai num silêncio inquisidor, um holofote de polícia secreta desce sobre a minha cabeça e um inteligente de serviço corrige o meu "extremismo", disparando: "Mas eles foram eleitos democraticamente. Você não respeita a democracia?".
Ah, como é bela a vida dos simples! Sobretudo daqueles para quem a democracia representa, em política, o mesmo que a absolvição no catolicismo. Os caudilhos podem ser a negação absoluta de um regime "liberal", ou seja, um regime submetido ao governo das leis e não ao capricho arbitrário dos homens. Mas a urna é como a pia batismal: basta passar por lá e ganhar um lugar no céu dos democratas.
Infelizmente, as coisas são mais complexas. E a existência de eleições, como na Venezuela ou na Rússia, não garante a existência de um regime liberal. Eleições significam apenas que o governante foi escolhido pelo voto da maioria. Um regime liberal significa mais: significa que, uma vez eleito pelo voto da maioria, o governante não destrói o Estado de Direito, não arrasa com as liberdades básicas da comunidade e não silencia opositores ou órgãos de comunicação. Eleições livres são condição para a emergência de um regime liberal. Mas não basta a existência de voto majoritário para que um regime liberal desça milagrosamente sobre a sociedade.
Pelo contrário: como sucedeu no passado (na Alemanha, em 1933); como sucede no presente (no Zimbábue, com Mugabe, e em dezenas de outros regimes criminosos da África); e como sucederá no domingo (na Rússia e, quem sabe, na Venezuela), às vezes é por via democrática que se liquidam os regimes verdadeiramente livres. Quando as liberdades essenciais são esquecidas ou destruídas, as urnas não passam de adereços literalmente funerários.


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