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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Urnas funerárias
Em duas partes do mundo, no mesmo dia, dois fenômenos "democráticos" serão a
minha desgraça pessoal
NO PRÓXIMO domingo, dia 2 de
dezembro, dois fenômenos
"democráticos", em duas
partes do mundo, vão contribuir para o meu descrédito público.
Na Rússia, as eleições parlamentares, com toda a certeza, vão entregar vitória folgada ao partido Rússia
Unida, de Vladimir Putin. Conseqüências? Em março, quando Putin
deixar o cargo e colocar no lugar da
Presidência uma marionete qualquer (provavelmente, o atual primeiro-ministro, Viktor Zubkov), será ele, Putin, o novo primeiro-ministro, continuando a manipular o
Kremlin e a fechar, ainda mais, a sociedade e a política russas.
Na Venezuela, um referendo a 69
emendas constitucionais pode permitir que Hugo Chávez fique no poder até o fim da vida, ao mesmo tempo em que garante ao caudilho o
controle sobre governantes estaduais e regionais. Sem esquecer, claro, a transformação do Exército em
força policial abertamente revolucionária e a possibilidade do presidente declarar "estados de emergência" por períodos indeterminados, eufemismo para o autoritarismo em que o país passará a viver.
Dois acontecimentos, em duas
partes do mundo, curiosamente no
mesmo dia, que serão a minha desgraça pessoal. Sei do que falo. De vez
em quando, em conversas públicas,
critico Putin e Chávez com os piores
adjetivos. O povo em volta cai num
silêncio inquisidor, um holofote de
polícia secreta desce sobre a minha
cabeça e um inteligente de serviço
corrige o meu "extremismo", disparando: "Mas eles foram eleitos democraticamente. Você não respeita
a democracia?".
Ah, como é bela a vida dos simples!
Sobretudo daqueles para quem a democracia representa, em política, o
mesmo que a absolvição no catolicismo. Os caudilhos podem ser a negação absoluta de um regime "liberal", ou seja, um regime submetido
ao governo das leis e não ao capricho
arbitrário dos homens. Mas a urna é
como a pia batismal: basta passar
por lá e ganhar um lugar no céu dos
democratas.
Infelizmente, as coisas são mais
complexas. E a existência de eleições, como na Venezuela ou na Rússia, não garante a existência de um
regime liberal. Eleições significam
apenas que o governante foi escolhido pelo voto da maioria. Um regime
liberal significa mais: significa que,
uma vez eleito pelo voto da maioria,
o governante não destrói o Estado
de Direito, não arrasa com as liberdades básicas da comunidade e não
silencia opositores ou órgãos de comunicação. Eleições livres são condição para a emergência de um regime liberal. Mas não basta a existência de voto majoritário para que um
regime liberal desça milagrosamente sobre a sociedade.
Pelo contrário: como sucedeu no
passado (na Alemanha, em 1933);
como sucede no presente (no Zimbábue, com Mugabe, e em dezenas
de outros regimes criminosos da
África); e como sucederá no domingo (na Rússia e, quem sabe, na Venezuela), às vezes é por via democrática que se liquidam os regimes verdadeiramente livres. Quando as liberdades essenciais são esquecidas ou
destruídas, as urnas não passam de
adereços literalmente funerários.
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