São Paulo, sábado, 28 de novembro de 2009

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Nelson, o ex-covarde

Crítico afirma que coragem de Nelson Rodrigues ao pensar contra sua época foi a responsável por ensaios que irão permanecer

Arquivo Paulo Garcez/Divulgação
Nelson Rodrigues em entrevista em 980, ano em que morreu

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

O maior dramaturgo da história do país foi também seu maior ensaísta e um dos principais intérpretes da sociedade brasileira, talvez o melhor da segunda metade do século 20. Em suas "confissões", crônicas de jornal publicadas entre o final dos anos 60 e início dos 70, aparece "uma das melhores expressões literárias de diagnóstico do nosso tempo". "Para ombrear com ele, no Brasil, talvez apenas Carlos Drummond de Andrade na poesia."
As afirmações aparecem em "Inteligência com Dor - Nelson Rodrigues Ensaísta", de Luís Augusto Fischer, crítico literário e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A ênfase -rodriguiana, como observa o colunista da Folha Marcelo Coelho na contracapa do livro- pode parecer desmedida. Por que seria necessária? As peças teatrais de Nelson há décadas não carecem desse tipo de defesa. Mas o arroubo é comum entre os leitores que têm descoberto a obra em prosa do autor desde que ela foi reorganizada por Ruy Castro, no final dos anos 80.
A causa do fenômeno talvez esteja no desejo de cada leitor de resolver a contradição íntima que resulta do contraste entre a aparente fragilidade da crônica, gênero jornalístico, tido como superficial, a que o pensamento de Nelson está associado, e seu texto arrebatador, corajoso, que continua a fazer pensar muito depois de fechado o jornal -ou o livro.
É daí que parte Fischer. Seu esforço está em resolver essa aparente contradição e apresentar padrões de comparação que lhe permitam fundamentar juízos de valor sobre os textos reunidos em obras como "A Menina sem Estrela" ou "O Óbvio Ululante".
Ele recorrerá à tradição ensaística ocidental desde Michel de Montaigne (1533-1592) para mostrar que Nelson, na verdade, não faz crônica. Este é um gênero menor, diz Fischer, certamente aparentado ao ensaio, mas que para ele perde em qualidade reflexiva, em humor (a crônica é apenas "cômica") e em maturidade existencial.
No caso brasileiro, tanto a melhor crônica quanto a obra de Nelson são sintomáticas de uma época. O país passou por um processo acelerado de urbanização, de imigração interna, de mudanças constantes e intensas no período em que Rubem Braga, por exemplo, publicava seus textos.
Mas a crônica, diz Fischer, não faz mais do que manifestar o mal-estar do cronista diante da velocidade da mudança. Toma o partido do passarinho, digamos, contra a ferocidade e a violência da cidade.
Nelson parte desse mal-estar para refletir sobre o processo em curso. Faz o diagnóstico, no calor da hora, do avanço da sociedade de massas, e toma o partido do indivíduo. Assim como Montaigne, em outra época conturbada, o Renascimento, ajudou a criar o indivíduo e seu pensamento independente.
O brasileiro, mais ainda, tematiza essa oposição. Ele afirma sua individualidade contra a ditadura do consenso, da multidão, dos "idiotas" em vantagem numérica. Contra a valorização da juventude, do novo (em sintonia com a época de mudanças), ele afirma os direitos da maturidade e tematiza o seu próprio processo de aprendizagem. Confessa suas covardias, suas dúvidas, suas hesitações, e delas faz matéria de reflexão. Isso é o ensaio, afirma Fischer, em seu livro.
Daí Nelson se dizer um "ex-covarde", quer dizer, um indivíduo que finalmente se arrisca a pensar por si próprio, contra o seu tempo. Por isso mesmo seu valor e sua permanência, diz o crítico, estão assegurados.


INTELIGÊNCIA COM DOR

Autor: Luís Augusto Fischer
Editora: Arquipélago Editorial
Quanto: R$ 39 (336 págs.)




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