São Paulo, segunda, 28 de dezembro de 1998

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O ano das esperanças em declínio

FERNANDO GABEIRA

Colunista da Folha
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A pesquisa indicando um apoio maciço a Clinton é um raio de bom senso no imbróglio americano. O presidente deve sobreviver no cargo assim como seu adversário de plantão, Saddam Hussein.
Talvez seja hora de investigar como foi possível termos chegado a isto, no fim do século 20. Não tenho a pretensão de chegar às causas, mas tive uma intuição de que o livro de Paul Krugman ("The Age of Diminished Expectations") pode oferecer algumas pistas.
Não era a intenção de Krugman desfazer este nó que une Clinton, Monica e Saddam Hussein, nem explicar esse festival do quem está comendo quem, inaugurado pelos moralistas republicanos e retomado agora por Larry Flynt, dono da "Hustler" e personagem de um grande filme, "O Povo contra Larry Flynt".
A constatação de Krugman é simples: apesar da formação de grandes fortunas nos últimos tempos, a família média americana ganha apenas um pouco mais do que ganhava há 20 anos.
Nas gerações anteriores, os norte-americanos sempre confiavam que as coisas seriam melhores, indivíduos poderiam contar com aumento de renda e prever para seus filhos melhores condições sociais. As grandes esperanças foram substituídas por uma estóica aceitação da realidade.
Não houve um salto no pessimismo. Para isso, contribuiu a excelente performance na oferta de empregos. Depois de um índice de 7,2% de desemprego no verão de 92, esse número vem caindo e, no meio dos anos 90, alcançava 5,3%, um quase recorde positivo nos últimos 20 anos. A retomada da economia abriu mais de 10 milhões de empregos.
Embora Krugman não especule sobre o tema, essa queda de expectativas na economia americana pode ter um peso no comportamento do governo. Ninguém tem condições de prever em que direção uma variável econômica pode determinar comportamentos, mas é provável que a ausência de um enriquecimento constante pode dar lugar a um desejo de purificação moral. Talvez de forma intuitiva, a minoria republicana quer jogar as cartas de uma purificação moral, mas as pesquisas indicam que esse caminho não é o mais provável.
No Brasil, onde há ainda uma certa elasticidade nas esperanças, o ano de 99 deve ser o das expectativas declinantes. A primeira vítima nessas conjunturas históricas são as lutas salariais: elas praticamente dão lugar a uma concentração na defesa do emprego, unindo empresários e trabalhadores.
O desejo de melhoria de condições de vida é permanente. Ele não desaparece, mas procura se ajustar à realidade, adia sua gratificação à espera de melhores momentos.
Supondo que a superação da conjuntura negativa não seja possível a curto prazo, outras expectativas podem encontrar seu espaço. Mas quais expectativas?
Dois campos, meio ambiente e direitos humanos, podem ser campos de experiência. Se não se pode enriquecer num determinado momento, não seria conveniente dedicar-se também a outro tipo de aperfeiçoamento. É ingênuo pensar que direitos humanos e meio ambiente não precisem de recursos para funcionar.
No entanto, no caso brasileiro, os níveis de consciência ambiental e respeito aos direitos humanos estão abaixo do enriquecimento material existente. Podem crescer sem depender mecanicamente da economia.
Outra vítima das conjunturas negativas são os investimentos estratégicos. O Brasil cortou a contrapartida do Plano Piloto do Grupo dos 7, um projeto de desenvolvimento sustentável na Amazônia. Ora, essa experiência, que conta, por assim dizer, com uma decisão política internacional, é uma ajuda para definir um caminho para uma das regiões mais discutidas do planeta.
Considerando que a maior parte do dinheiro vem de fora, e que o Brasil colocaria pouco mais de R$ 6 milhões, a retomada do Plano Piloto emerge como uma possibilidade em tempo de crise, pois custa muito menos do que pode realmente devolver ao país.
Uma terceira e importante vítima: a vontade de ousar.
A idéia que parece predominar é a de que, com pouco dinheiro, o melhor é ter poucas idéias e trabalhar com gente que vê apenas um palmo na frente do nariz.
Esta encruzilhada no Brasil é interessante porque o pior ano da década acontece no começo de um novo governo. Mais do que a escolha dos novos ministros, deveria existir uma curiosidade sobre como vão se comportar nos próximos anos.
O Congresso deveria chamar a maioria para se explicar. Ministros entram e saem do Congresso sem que sua passagem seja registrada. O ano que está começando merecia uma discussão. Claro que essa discussão prioritária se dará no campo econômico.
Mas não pode ser considerado herético discutir os caminhos da cultura num mundo integrado como hoje.
Qual o espaço dos brasileiros nesse mundo, até que ponto a cultura não deve ser considerada um dos grandes recursos a se mobilizar num tempo de crise?
Nos EUA, é possível se detectar a estagnação na renda da família média e um grande debate sobre quem está comendo quem. Tenho muito medo de que nossa crise possa nos conduzir também para perguntas erradas, para a perda de tempo.
Não temo por cruzadas morais no Brasil. Temo apenas que, vendo o país depender de empréstimos internacionais, ser apontado como gigante que precisa ser escorado para não cair, as pessoas se resignem com a pobreza das propostas da política institucional e desistam de buscar novos espaços.
Pode-se contestar esse raciocínio, argumentando que a queda das esperanças tem seus pontos positivos. Mas isso para quem decide filosoficamente pelo seu abandono. O que temo é um vazio criado pela defensiva econômica e que a única resposta em cena acabe sendo as religiões, com seus pastores carismáticos e padres cantores.
Pelo menos, o ano de 1999, com as guitarras católicas e os hinos das inúmeras igrejas que prosperam no Brasil, estará lançando esta questão no ar: se a economia não é tudo, que outros valores podem coexistir com ela?



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