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CONTARDO CALLIGARIS
Filme do cão
No inverno de 1994, na Universidade de Nova York, um
painel de intelectuais franceses
debatia os "malefícios" da internet. Alain Finkielkraut (que, apesar do que segue, é autor de livros
respeitáveis) descreveu a net como um pesadelo totalitário. Um
estudante lhe fez observar o óbvio: a net é tudo salvo uma estrutura totalitária centralizada. Finkielkraut respondeu que, de fato,
ele desconhecia o funcionamento
da net e nunca tinha estado on-line na vida. Levantando com brio
sua caneta tinteiro, acrescentou
que nem sabia se servir de um
computador.
Uma minoria achou graça. A
maioria foi embora. Meu vizinho
de cadeira, ao levantar-se, disse a
um amigo: "Não vou passar a
noite escutando este babaca".
Concordo: quem fala do que
não conhece com a intenção de
ser levado a sério é um babaca. E
quem fica para escutá-lo é duplamente babaca.
Ora, o diretor e autor do script
de "Dogville", Lars von Trier, dinamarquês, declarou que seu filme é uma crítica dos Estados Unidos, onde, acrescentou orgulhosamente, ele nunca esteve. Numa
entrevista ao "Guardian" de 15/
5/2003, ele explicou que não precisa conhecer o país para criticá-lo e repreendê-lo, pois, afirmou
expressa e literalmente, os EUA já
são uma parte muito relevante de
sua consciência, e isso pode bastar.
Lendo a entrevista, embora essa
última afirmação me deixasse
perplexo, pensei apenas que Von
Trier era mais um babaca. Quando o filme estreasse, eu pouparia
meus R$ 14.
Mas, recentemente, lembrei-me
do seguinte: no inverno de 2002,
um amigo, que vivia em Williamsburg (Brooklyn, Nova
York), hospedou Lars von Trier
em seu apartamento. Além disso,
o mesmo amigo jura de pés juntos
que o diretor dinamarquês passou meses em Los Angeles entre
1996 e 1997.
De repente, o filme me interessou: queria entender por que Von
Trier sentiria a necessidade de
nos contar abobrinhas.
Claro, há um oportunismo de
marqueteiro: vocês, que, pelo
mundo afora, não conhecem os
EUA e estão indignados com a
atual política norte-americana,
bebam à fonte de meus preconceitos. Numa época de vivo antiamericanismo, a atitude garante
ingressos.
Mas deve haver outras razões,
além da bilheteria, para que Von
Trier proponha "Dogville" como
uma crítica aos EUA, e, ao mesmo
tempo, ao custo de uma mentira
(por pequena que seja), insista em
declarar que sua crítica é o preconceito de quem não conhece.
A história do filme é a seguinte:
nos anos 20, chega a um minúsculo vilarejo norte-americano uma
moça perseguida por gângsteres.
O vilarejo aceita protegê-la, mas,
aos poucos, passa a escravizá-la
perversamente.
O filme é pretensioso, o cenário
e os diálogos gritando: "Sou o novo Godard, olhem como sou brilhante". Apesar dos esforços admiráveis dos atores, a complexidade das personagens é escassa.
Se o filme fosse uma meditação
geral sobre a perversidade humana, ele seria só cínico. E o cinismo
é o disfarce mais barato para simular inteligência: "revelar" que
os homens são todos ruins é (quase sempre) apenas uma maneira
de proclamar que a gente não é
burro.
Se o filme quisesse apresentar os
efeitos do ódio pelo diferente numa pequena comunidade isolada
(e americana), seria inevitável
pensar em "Deliverance"
("Amargo Pesadelo"), de John
Boorman, 1972, que é incomparavelmente melhor.
De qualquer forma, a história
evoca não os EUA dos anos 20,
mas a época sombria em que, pela Europa invadida e ocupada,
muitos judeus perseguidos pagaram caro a "generosidade" de
quem os escondia.
O fim do filme (que não revelarei) é, aliás, estranhamente filoamericano e nos deixa com uma
mensagem contraditória: os habitantes de Dogville (que seriam
americanos) são horríveis, mas
ainda bem que, de vez quando, os
americanos chegam para acabar
com Dogville. Esse paradoxo se
explica se tentamos entender a
origem do preconceito de Von
Trier.
A Dinamarca foi ocupada pelos
nazistas em 1940, em poucas horas; rei e governo se resignaram. A
nação resgatou sua honra a partir de 1942, quando começou uma
resistência heróica que, por exemplo, em 1943, garantiu a fuga de
7.000 judeus para a Suécia livre.
Mas, antes disso, há uma página
de história menos gloriosa. Cito
uma fonte pouco suspeita, a história da Dinamarca contada pelo
equivalente dinamarquês do Itamaraty: "Na ocasião da ofensiva
alemã contra a União Soviética
em 22 de junho de 1941, os alemães exigiram que os dirigentes
comunistas dinamarqueses fossem internados, o que foi feito
com um zelo que ultrapassava
largamente as exigências alemãs".
Acontece que os pais de Von
Trier eram comunistas militantes. Não sei como eles e seus camaradas viveram essa época.
Mas duvido que tenha sido um
momento feliz. Será que houve
comunidades dinamarquesas
que abusaram de seus comunistas escondidos como o vilarejo de
Dogville abusa de Nicole Kidman,
se não pior?
O mecanismo é banal: pelo preconceito, atribuo ao outro alguns
traços meus ou de minha história
que prefiro ignorar. Apontar a
podridão alhures é mais simples
que lidar com minhas tripas malcheirosas. E, no reino da Dinamarca, aconteceu algo podre que
talvez Von Trier prefira silenciar.
Por isto, o filme, apesar de medíocre e desonesto, é interessante:
porque é um exemplo esclarecedor de como nasce e funciona um
preconceito.
O título, "Dogville", significa cidade do cão, e, de fato, há um cachorro na história. Mas, considerando que o filme fala das dificuldades de Von Trier com sua própria história e que Dogma é o nome do grupo que o diretor fundou, "Dogmaville" teria sido um
título mais apropriado.
@ - ccalligari@uol.com.br
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