São Paulo, quinta, 29 de janeiro de 1998

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'DIÁRIO DE UM DETENTO'

"São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8h da manhã/ Aqui estou, mais um dia/ Sob o olhar sanguinário do vigia/ Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de um HK/ Metralhadora alemã ou de Israel/ Estraçalha ladrão que nem papel
Na muralha em pé/ mais um cidadão José/ servindo o Estado, um PM bom/ passa fome, metido a Charles Bronson/ Ele sabe o que eu desejo/ Sabe o que eu penso/ O dia tá chuvoso/ O clima tá tenso/ Vários tentaram fugir, eu também quero/ Mas de um a cem, a minha chance é zero/ Será que Deus ouviu minha oração?/ Será que o juiz aceitou apelação? (...)
Cada detento uma mãe, uma crença/ Cada crime uma sentença/ Cada sentença um motivo, uma história de lágrima, sangue, vidas e glórias/ abandono/ miséria, ódio/ sofrimento/ desprezo/ desilusão/ ação do tempo/ Misture bem essa química, pronto:/ fiz um novo detento
Minha palavra de honra me protege/ pra viver no país das calças bege/ Tic-tac, ainda é 9h40/ O relógio da cadeia anda em câmera lenta/ Ratatatá, mais um metrô vai passar/ com gente de bem, apressada, católica/ lendo jornal, satisfeita, hipócrita/ com raiva por dentro, a caminho do centro/ olhando pra cá/ Curiosos é lógico/ Não, não é não/ não é o zoológico
Minha vida não tem tanto valor/ quanto seu celular, seu computador/ Hoje, tá difícil, não saiu o sol/ Hoje não tem visita, não tem futebol/ Alguns companheiros têm a mente mais fraca/ Não suporta o tédio, arruma quiaca/ Graças a Deus e à Virgem Maria/ Falta só um ano, três meses e uns dias/ Tem uma cela lá em cima fechada desde terça-feira/ Ninguém abre pra nada/ Só o cheiro de morte pinho sol/ Um preso se enforcou com o lençol/ Qual que foi? Quem sabe? Não conta/ Ia tirar mais uns seis de ponta a ponta (...)
Amanheceu com sol, dois de outubro/ Tudo funcionando, limpeza jumbo/ De madrugada eu senti um calafrio/ Não era do vento, não era do frio/ Acerto de conta tem quase todo dia/ Ia ter outro logo mais, eu sabia/ Lealdade é o que todo preso tenta/ conseguir, a paz, de forma violenta/ Se um salafrário sacanear alguém/ leva ponto na cara igual Frankstein
Fumaça na janela, tem fogo na cela/ F..., foi além/... se pã!, tem refém/ Na maioria, se deixou envolver/ por uns cinco ou seis que não têm nada a perder/ Dois ladrões considerados passaram a discutir/ mas não imaginavam o que estaria por vir/ Traficantes, homicidas, estelionatários/ uma maioria de moleque primário/ Era a brecha que o sistema queria/ Avise o IML, chegou o grande dia/ Depende do sim ou não de um só homem/ que prefere ser neutro pelo telefone/ Ratatatá caviar e champanhe/ Fleury foi almoçar que se f.. a minha mãe/ cachorros assassinos, gás lacrimogêneo.../ quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio
O ser humano é descartável no Brasil/ como módes usado ou Bombril/ Cadeia? Claro que o sistema não quis/ esconde o que a novela não diz/ ratatatá, sangue jorra como água/ do ouvido, da boca e nariz/ O Senhor é meu pastor.../ perdoe o que seu filho fez/ morreu de bruços no salmo 23/ sem padre, sem repórter/ sem arma, sem socorro/ vai pegar HIV na boca do cachorro/ cadáveres no poço, no pátio interno/ Adolf Hitler sorri no inferno/ O Robocop do governo é frio, não sente pena/ só ódio e ri como a hiena/ Ratatatá, Fleury e sua gangue/ vão nadar numa piscina de sangue/ Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia 3 de outubro, diário de um detento."



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