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Cinema-verdade de Jean Rouch ganha retrospectiva
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
Jean Rouch, cuja obra é atração
de uma (modesta) retrospectiva
no festival de documentários É
Tudo Verdade, morreu no mês
passado num acidente de carro
em Níger. Quase cinco décadas
antes, os constantes acidentes de
trânsito no Níger eram comentados em um dos clássicos do diretor francês, "Eu, um Negro".
"Nós somos como os americanos. Os carros aqui não duram
mais do que dois meses", dizia,
diante da imagem de um acidente, Edward G. Robinson, não o astro hollywoodiano, mas o jovem
nigeriano que lhe tomou o nome
neste filme em que a realidade
africana subvertia a todo momento os mitos da modernidade.
Essa seqüência inspirou uma
outra, de Godard, em "Acossado"
(espécie de "Eu, um Branco"), em
que o protagonista deparava-se
com um acidente depois de esbarrar em uma vendedora da revista
"Cahiers du Cinéma". Esta exibia
justamente o número da revista
em que Godard publicara seu artigo sobre "Eu, um Negro" (58).
No artigo, Godard celebrava o
encontro entre arte e acaso, ficção
e documentário no cinema de
Rouch. Encontro que resultou,
antes de tudo, de uma dificuldade
técnica: depois de filmar "Jaguar",
sem poder captar nenhum material sonoro, Rouch teve a idéia de
pedir aos atores-personagens do
filme que dublassem e comentassem as imagens.
O resultado foi revelador tanto
para o cineasta quanto para os
atores: ao se verem representando
e ficcionalizando a própria vida,
ao se fazerem espectadores de si
mesmos, pareciam descobrir sua
verdade.
"O filme é o espelho onde ele
descobre a si mesmo", dizia
Rouch sobre o Robinson de "Eu,
um Negro". Diante do espelho, os
comentários de Robinson reafirmam a sua realidade e o seu imaginário. Mas Robinson já não é o
mesmo. Nem Rouch. "Eu, um
Negro" é o devir de ambos, Rouch
em negro e Robinson em branco
que se redescobre negro. Como
notaria Gilles Deleuze, enquanto
Rouch fazia o seu discurso indireto livre através de Robinson, este
fazia, através de Rouch, um discurso indireto livre sobre a África.
Depois de renovar a etnografia
pelo cinema e o cinema pela etnografia, Rouch, de volta a Paris,
aporta na praia da sociologia em
"Crônica de um Verão" (1962).
Para o co-autor do filme, o sociólogo Edgar Morin, "Crônica" era a
oportunidade de testar em termos
metodológicos o uso do audiovisual no campo da sociologia.
Para Rouch, tratava-se de adequar o seu método ao som direto
e aprimorar sua arte do encontro,
dobrando sua velha aposta no poder que a câmera de cinema tem
de provocar e catalisar momentos
de verdade. Ele e Morin exibem o
resultado para seus personagens,
filmam, surpreendidos, a acalorada reação destes e se munem de
farto arsenal para lançar o manifesto do cinema-verdade.
A escola francesa do novo documentarismo nascia diferenciando-se, desde o começo, da americana (do cinema direto) por não
se furtar a intervir na realidade.
É justamente na intervenção, na
forma como provoca e transtorna
a realidade, que reside a maestria
de Rouch. Para ele, o importante
era fazer do filme o lugar de uma
experiência verdadeira, o lugar de
uma aventura de descoberta.
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