São Paulo, segunda-feira, 29 de março de 2004

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Cinema-verdade de Jean Rouch ganha retrospectiva

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Jean Rouch, cuja obra é atração de uma (modesta) retrospectiva no festival de documentários É Tudo Verdade, morreu no mês passado num acidente de carro em Níger. Quase cinco décadas antes, os constantes acidentes de trânsito no Níger eram comentados em um dos clássicos do diretor francês, "Eu, um Negro".
"Nós somos como os americanos. Os carros aqui não duram mais do que dois meses", dizia, diante da imagem de um acidente, Edward G. Robinson, não o astro hollywoodiano, mas o jovem nigeriano que lhe tomou o nome neste filme em que a realidade africana subvertia a todo momento os mitos da modernidade.
Essa seqüência inspirou uma outra, de Godard, em "Acossado" (espécie de "Eu, um Branco"), em que o protagonista deparava-se com um acidente depois de esbarrar em uma vendedora da revista "Cahiers du Cinéma". Esta exibia justamente o número da revista em que Godard publicara seu artigo sobre "Eu, um Negro" (58).
No artigo, Godard celebrava o encontro entre arte e acaso, ficção e documentário no cinema de Rouch. Encontro que resultou, antes de tudo, de uma dificuldade técnica: depois de filmar "Jaguar", sem poder captar nenhum material sonoro, Rouch teve a idéia de pedir aos atores-personagens do filme que dublassem e comentassem as imagens.
O resultado foi revelador tanto para o cineasta quanto para os atores: ao se verem representando e ficcionalizando a própria vida, ao se fazerem espectadores de si mesmos, pareciam descobrir sua verdade.
"O filme é o espelho onde ele descobre a si mesmo", dizia Rouch sobre o Robinson de "Eu, um Negro". Diante do espelho, os comentários de Robinson reafirmam a sua realidade e o seu imaginário. Mas Robinson já não é o mesmo. Nem Rouch. "Eu, um Negro" é o devir de ambos, Rouch em negro e Robinson em branco que se redescobre negro. Como notaria Gilles Deleuze, enquanto Rouch fazia o seu discurso indireto livre através de Robinson, este fazia, através de Rouch, um discurso indireto livre sobre a África.
Depois de renovar a etnografia pelo cinema e o cinema pela etnografia, Rouch, de volta a Paris, aporta na praia da sociologia em "Crônica de um Verão" (1962). Para o co-autor do filme, o sociólogo Edgar Morin, "Crônica" era a oportunidade de testar em termos metodológicos o uso do audiovisual no campo da sociologia.
Para Rouch, tratava-se de adequar o seu método ao som direto e aprimorar sua arte do encontro, dobrando sua velha aposta no poder que a câmera de cinema tem de provocar e catalisar momentos de verdade. Ele e Morin exibem o resultado para seus personagens, filmam, surpreendidos, a acalorada reação destes e se munem de farto arsenal para lançar o manifesto do cinema-verdade.
A escola francesa do novo documentarismo nascia diferenciando-se, desde o começo, da americana (do cinema direto) por não se furtar a intervir na realidade.
É justamente na intervenção, na forma como provoca e transtorna a realidade, que reside a maestria de Rouch. Para ele, o importante era fazer do filme o lugar de uma experiência verdadeira, o lugar de uma aventura de descoberta.


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