São Paulo, segunda-feira, 29 de março de 2004

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NELSON ASCHER

Um crime contra a humanidade

Causou viva indignação no mundo inteiro o assassinato a sangue frio do líder espiritual da Transilvânia, o conde Drácula. O militante e fundador do movimento antiimperialista local foi vítima do que entidades de defesa dos direitos humanos e especialistas na legislação internacional qualificaram como "uma execução extrajudicial". O Reino Unido assumiu a responsabilidade pelo ataque, justificando-o como uma represália legítima, num contexto de guerra, contra um inimigo declarado. Fontes diplomáticas, sob a condição de permanecerem anônimas, revelaram que a "liquidação" do aristocrata teria sido levada a cabo por membros de elite dos Serviços Secretos Britânicos sob o comando do Dr. Abraham Van Helsing.
O conde, conhecido pelos amigos como Vlad Tepes (Vlad, o empalador), havia fundado e dirigia há mais de quinhentos anos o MLT (Movimento de Libertação da Transilvânia). Embora sua popularidade na região fosse incontestável e centenas de milhares de habitantes tenham saído imediatamente às ruas de Timisoara, Oradea, Cluj-Napoca e Tirgu Mures para protestar, seus adversários insistem que ele não passava de um "vampiro", algo que seus seguidores negam, declarando que "quem é vampiro para alguns é um herói da resistência para outros".
O líder espiritual dos transilvânios foi finalmente localizado por seus perseguidores ontem, na cripta de seu castelo em Bran, a 30 km de Brasov, nos Cárpatos centrais. Seu porta-voz, o sr. Renfield, contou à Reportagem que, pego covardemente durante sua sesta diurna enquanto repousava dentro de um ataúde, o ancião imobilizado não teve nenhuma chance de se defender contra a alta tecnologia das estacas de madeira que os Estados Unidos fornecem aos ingleses. E assegurou-nos também que "vampiros não existem": "eles são", nas palavras dele, " apenas uma desculpa dos colonizadores para se apossarem criminosamente de nossas terras e justificarem esta ocupação ilegal".
O assessor de imprensa do Dr. Van Helsing, que não assumiu ou negou pessoalmente a autoria do atentado, afirmou, por seu turno, não apenas que vampiros de fato existem, mas que é equivocado usar o termo "matar" para descrever sua eliminação, pois, de qualquer maneira, já estão mortos. Aplicando-lhes o termo técnico "desmortos", ele aproveitou para enfatizar que não adianta lutar contra os vampiros-rasos, os de baixo escalão, que seriam apenas inocentes úteis manipulados por lideranças que os submeteram à lavagem cerebral e drenagem arterial. Como é preciso, segundo o assessor, confrontar-se com a raiz desse mal, o que se pode fazer de mais humano consiste em destruir a linha de montagem dos sugadores de sangue: "Drácula, mais que um vampiro, era uma verdadeira fábrica de fazer vampiros".
As chancelarias européias condenaram unanimemente o assassinato uma vez que este atenta contra a legalidade internacional e vai, além disso, prejudicar seguramente o processo de paz que se desenrola há quase um milênio na região. A ONU, através de seu secretário-geral, chamou a ação britânica de "simplesmente inaceitável", de "uma barbárie cometida contra um líder democraticamente escolhido" (o conde fora eleito para seu cargo em 1496), acrescentando que mesmo alguém acusado de vampirismo tem direito a um julgamento justo e que dure pelo menos dois ou três séculos na Corte Internacional de Justiça. Quanto às ONGs, elas denunciaram o capitalismo internacional, explicando que o conde havia sido sempre um obstáculo à ganância das grandes madeireiras e do lobby dos caçadores de lobos que vêm destruindo o delicado equilíbrio ecológico dos Cárpatos.
As opiniões dos especialistas em vampirologia foram mais variadas. Alguns vampirólogos observaram que o conde era, ao contrário de como seus inimigos o retratavam, um moderado, que, devido à sua longa experiência no ramo, descobrira as vantagens da negociação sobre a força bruta e, assim, contribuía decisivamente para conter seus seguidores mais sedentos. "Agora", de acordo com aqueles, "tudo vai piorar: Drácula desvivo será muito mais perigoso que desmorto e, para cada vampiro eliminado, cem novos se erguerão de suas sepulturas para continuar a luta até converterem toda a humanidade à sua causa". Outros peritos, no entanto, retrucam que mesmo os vampiros precisam de gente viva para sobreviverem, ou melhor, não desviverem: "Afinal, se todos os viventes forem mortos ou transformados em vampiros, então quem é que fornecerá o sangue fresco? O que eles vão fazer, sugar-se uns aos outros?"
Apesar de ser visto por muitos como o culpado pelo desaparecimento de milhares de pessoas, o aristocrata era, aos olhos de seus conterrâneos, um cidadão exemplar. Formado em ciências ocultas e em hematologia, ele atribuía sua longevidade e seu aspecto juvenil a horas e horas de exercício todas as noites, bem como a uma dieta equilibrada. Benfeitor de seu povo, ele mantinha em seu castelo um internato para moças virgens e um laboratório de análises clínicas cujos serviços oferecia de graça à população.
Com lágrimas nos olhos, o Sr. Renfield não poupou acusações aos detratores de seu chefe. "Hollywood", disse, "não pode escapar impunemente". E, culpando a indústria cinematográfica pela deturpação universal da imagem de Vlad, "um filantropo e humanista que a propaganda hostil reduzira a uma monstruosa sanguessuga", ele concluiu: "Drácula, um vampiro? Vampiro para mim é quem penetra na calada do dia em uma cripta alheia, profana o caixão de alguém adormecido e lhe crava uma estaca no peito".


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