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NELSON ASCHER
Um crime contra a humanidade
Causou viva indignação no
mundo inteiro o assassinato
a sangue frio do líder espiritual
da Transilvânia, o conde Drácula. O militante e fundador do movimento antiimperialista local foi
vítima do que entidades de defesa
dos direitos humanos e especialistas na legislação internacional
qualificaram como "uma execução extrajudicial". O Reino Unido assumiu a responsabilidade
pelo ataque, justificando-o como
uma represália legítima, num
contexto de guerra, contra um
inimigo declarado. Fontes diplomáticas, sob a condição de permanecerem anônimas, revelaram
que a "liquidação" do aristocrata
teria sido levada a cabo por membros de elite dos Serviços Secretos
Britânicos sob o comando do Dr.
Abraham Van Helsing.
O conde, conhecido pelos amigos como Vlad Tepes (Vlad, o empalador), havia fundado e dirigia
há mais de quinhentos anos o
MLT (Movimento de Libertação
da Transilvânia). Embora sua
popularidade na região fosse incontestável e centenas de milhares de habitantes tenham saído
imediatamente às ruas de Timisoara, Oradea, Cluj-Napoca e
Tirgu Mures para protestar, seus
adversários insistem que ele não
passava de um "vampiro", algo
que seus seguidores negam, declarando que "quem é vampiro para
alguns é um herói da resistência
para outros".
O líder espiritual dos transilvânios foi finalmente localizado por
seus perseguidores ontem, na
cripta de seu castelo em Bran, a
30 km de Brasov, nos Cárpatos
centrais. Seu porta-voz, o sr. Renfield, contou à Reportagem que,
pego covardemente durante sua
sesta diurna enquanto repousava
dentro de um ataúde, o ancião
imobilizado não teve nenhuma
chance de se defender contra a alta tecnologia das estacas de madeira que os Estados Unidos fornecem aos ingleses. E assegurou-nos também que "vampiros não
existem": "eles são", nas palavras
dele, " apenas uma desculpa dos
colonizadores para se apossarem
criminosamente de nossas terras
e justificarem esta ocupação ilegal".
O assessor de imprensa do Dr.
Van Helsing, que não assumiu ou
negou pessoalmente a autoria do
atentado, afirmou, por seu turno,
não apenas que vampiros de fato
existem, mas que é equivocado
usar o termo "matar" para descrever sua eliminação, pois, de
qualquer maneira, já estão mortos. Aplicando-lhes o termo técnico "desmortos", ele aproveitou
para enfatizar que não adianta
lutar contra os vampiros-rasos, os
de baixo escalão, que seriam apenas inocentes úteis manipulados
por lideranças que os submeteram à lavagem cerebral e drenagem arterial. Como é preciso, segundo o assessor, confrontar-se
com a raiz desse mal, o que se pode fazer de mais humano consiste
em destruir a linha de montagem
dos sugadores de sangue: "Drácula, mais que um vampiro, era
uma verdadeira fábrica de fazer
vampiros".
As chancelarias européias condenaram unanimemente o assassinato uma vez que este atenta
contra a legalidade internacional
e vai, além disso, prejudicar seguramente o processo de paz que se
desenrola há quase um milênio
na região. A ONU, através de seu
secretário-geral, chamou a ação
britânica de "simplesmente inaceitável", de "uma barbárie cometida contra um líder democraticamente escolhido" (o conde fora eleito para seu cargo em 1496),
acrescentando que mesmo alguém acusado de vampirismo
tem direito a um julgamento justo e que dure pelo menos dois ou
três séculos na Corte Internacional de Justiça. Quanto às ONGs,
elas denunciaram o capitalismo
internacional, explicando que o
conde havia sido sempre um obstáculo à ganância das grandes
madeireiras e do lobby dos caçadores de lobos que vêm destruindo o delicado equilíbrio ecológico
dos Cárpatos.
As opiniões dos especialistas em
vampirologia foram mais variadas. Alguns vampirólogos observaram que o conde era, ao contrário de como seus inimigos o retratavam, um moderado, que, devido à sua longa experiência no
ramo, descobrira as vantagens da
negociação sobre a força bruta e,
assim, contribuía decisivamente
para conter seus seguidores mais
sedentos. "Agora", de acordo com
aqueles, "tudo vai piorar: Drácula desvivo será muito mais perigoso que desmorto e, para cada
vampiro eliminado, cem novos se
erguerão de suas sepulturas para
continuar a luta até converterem
toda a humanidade à sua causa".
Outros peritos, no entanto, retrucam que mesmo os vampiros precisam de gente viva para sobreviverem, ou melhor, não desviverem: "Afinal, se todos os viventes
forem mortos ou transformados
em vampiros, então quem é que
fornecerá o sangue fresco? O que
eles vão fazer, sugar-se uns aos
outros?"
Apesar de ser visto por muitos
como o culpado pelo desaparecimento de milhares de pessoas, o
aristocrata era, aos olhos de seus
conterrâneos, um cidadão exemplar. Formado em ciências ocultas e em hematologia, ele atribuía
sua longevidade e seu aspecto juvenil a horas e horas de exercício
todas as noites, bem como a uma
dieta equilibrada. Benfeitor de
seu povo, ele mantinha em seu
castelo um internato para moças
virgens e um laboratório de análises clínicas cujos serviços oferecia de graça à população.
Com lágrimas nos olhos, o Sr.
Renfield não poupou acusações
aos detratores de seu chefe.
"Hollywood", disse, "não pode escapar impunemente". E, culpando a indústria cinematográfica
pela deturpação universal da
imagem de Vlad, "um filantropo
e humanista que a propaganda
hostil reduzira a uma monstruosa sanguessuga", ele concluiu:
"Drácula, um vampiro? Vampiro
para mim é quem penetra na calada do dia em uma cripta alheia,
profana o caixão de alguém adormecido e lhe crava uma estaca no
peito".
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