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CONTARDO CALLIGARIS
O "mea-culpa" pela escravatura
As desculpas retroativas pela escravatura parecem ser sinais da volta do racismo
O REINO Unido celebra os 200
anos da abolição do comércio
de escravos. Tony Blair expressou seu pesar pelo antigo papel
dos britânicos no tráfico.
Como assinala Marco Aurélio Canônico na Folha do dia 24, os aniversários anteriores passaram sem
destaque especial. O historiador
John Oldfield, citado por Canônico, atribui o interesse atual pelo
aniversário às mudanças na sociedade britânica: o "mea-culpa" seria
um jeito de agradar às massas de
imigrantes das ex-colônias, facilitando sua integração. Quem dera...
O processo da abolição da escravatura é uma longa jornada da
consciência ocidental; começou
nos primeiros séculos da cristandade, com o sucesso da idéia de que
o limite da humanidade não é a tribo, a raça ou a fé, mas é a própria
espécie: somos irmãos, simplesmente por sermos humanos. Hoje,
por um sentimento espontâneo e
imediato, qualquer ser humano é
"dos nossos". No passado e em outras culturas, já foi e ainda é banal
considerar que nosso semelhante é
só quem dorme na toca da gente.
A idéia de uma comunidade da
espécie humana é uma invenção,
se não exclusiva, no mínimo peculiar da cultura ocidental. E, sem essa idéia, vinga a tentação de usar e
possuir o outro (diferente e, portanto, subumano) como um objeto.
Em suma, o aniversário do dia 25
deveria ser uma festa para todos -
no caso, todos os cidadãos e residentes do Reino Unido, celebrando
juntos sua igualdade de princípio.
Ora, as desculpas pela escravatura sugerem uma divisão: de um lado, há os "descendentes de escravos", do outro, os "descendentes de
escravocratas". É curioso, pois, na
modernidade ocidental, presume-se que ninguém se defina como
"descendente de": se somos todos
humanos, indiferentemente, é
também porque somos definidos
não pelo passado, mas por nossas
potencialidades futuras.
Entende-se que os ditos "descendentes de escravos" (cuja cultura
de origem pode ser escravocrata)
sejam, eventualmente, enredados
numa divisão subjetiva dolorosa:
aderir à cultura que os acolhe como cidadãos (porque, para ela, só
há homens livres) significa renegar
sua tradição.
Mais complicado é entender as
desculpas dos ditos "descendentes
de escravocratas", pois qual é o
sentido da desculpa retroativa de
quem não se define pelo seu passado?
Versão otimista: hoje, por termos "evoluído", enxergaríamos o
horror de um passado que não nos
define, que não é o da gente, mas
que, afinal, carregava nosso nome.
Tony Blair não tem nada a ver com
os ministros dos séculos 17 e 18,
salvo a referência comum a um
"Reino Unido" que, aliás, não é
mais o mesmo país.
Versão realista (a de Oldfield): as
desculpas constituem uma homenagem (forçada) aos imigrantes,
que são os novos cidadãos do Ocidente.
Minha versão é pessimista. A necessidade de se desculpar pela escravatura não vem do sentimento
(improvável) de uma responsabilidade retroativa nem da vontade
(duvidosa) de desejar as boas-vindas aos africanos. As desculpas se
parecem mais com os desagravos
preventivos e hipócritas que são
pronunciados quando a gente está
à beira de fazer uma besteira: "Desculpe, mas vou ter de lhe dar um
soco na cara". Explico.
As diferenças que a Europa deveria integrar hoje não são maiores
do que as que povoaram as Américas, por exemplo, no começo do século passado. As Américas tentaram diluir as diferenças transformando todos em puros agentes
econômicos: "Esqueça-se de suas
origens e pense em fazer fortuna".
A Europa, zelosa de sua história e
de suas identidades nacionais, pode dificilmente pedir a seus imigrantes que se esqueçam do passado deles. Com isso, na Europa, as
diferenças não se perdem, se agudizam.
As desculpas de hoje, justamente, parecem assinalar uma intolerância crescente. "Desculpe-me
por tê-lo escravizado no passado" é
um jeito de lembrar que o passado
continua valendo, e, nesse passado,
você foi escravo, eu não. Ou seja,
não somos bem humanos da mesma forma.
Em 1973, um psicanalista francês, Jacques Lacan, previa a subida
do racismo. Na época, antes das recentes ondas de imigração do Terceiro Mundo para a Europa, suas
palavras pareciam estranhas: afinal, não estávamos no meio do luminoso caminho da tolerância?
Hoje, obviamente, elas parecem
proféticas. E as pretensas desculpas pelo passado escravagista parecem ser mais uma inquietante confirmação do pressentimento de Lacan.
ccalligari@uol.com.br
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