São Paulo, sábado, 29 de março de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Música de câmara

A poesia de Malufe é arisca, rente ao banal -há manchas na parede, o hall do elevador, o desencontro dos casais

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

"NESTA CIDADE e Abaixo de Teus Olhos", segundo livro de Annita Costa Malufe, paulistana que também publicou a coletânea "Fundos para Dias de Chuva" (7Letras, 2004), assume, desde o título, os riscos e as promessas de uma sintaxe esgarçada (veja-se a intrigante quebra de paralelismo entre os termos que situam o sujeito, a cidade e as coordenadas de um olhar, aliás, de difícil atribuição) e de uma escrita tateante, aludida na forma do ensaio.
De poesia arisca, rente ao corriqueiro (as manchas na parede, o hall do elevador, os diálogos encruados, o desencontro dos casais, o silêncio e o ruído-ambiente), o eixo do livro está no encadeamento de instantâneos do movimento, apreensão dramatizada do tempo próprio em que percepções do mundo se verbalizam, ganham nome, passam a vigorar como voz de uma consciência reflexiva.
Não uma reflexão sobre o grande mundo, mas a voltada para o vizinho e o efêmero.
Em sua armação fragmentária, "Nesta Cidade e Abaixo de Teus Olhos" tem o aspecto de partitura verbal, esboço de poema longo, segundo padrões modernos, em fuga constante do apelo do narrativo: "que história eu vou contar?/ (logo eu/ que sempre fui péssima de enredos)". O flerte com um olhar abaixo da linha do horizonte, colado ao próximo e com a paciência da minúcia, produz um ritmo associativo aparentado ao da prosa poética.
Mas, se algo aqui se narra, é uma urgência de múltiplas formalizações do eu ("corro de uma angústia que me morde pela manhã/ preciso falar e tantas vezes acordo muda/ percorrendo o mundo como quem buscasse uma sombra"), aderindo a escólios mínimos de vivências urbanas, muitas e pouco espalhafatosas, anotadas a partir de observações esparsas, de falas inconclusas ("me levantar de manhã e novamente/ retornar/ ter uma casa duas casas duas horas para voltar").
E, ainda assim, figurações da intimidade (Marcos Siscar falou em "andamento de diário", a propósito de seu livro anterior, e Ana Cristina Cesar é evocada na orelha assinada por Heitor Ferraz) teimam em emergir desta recusa à receita tradicional da lírica.
A ambição por trás da poesia de Annita Malufe -alcançar, a partir da referência escassa e de um jogo livre de linguagem, uma tradução concreta e sensível de um "self" sempre renovado e caleidoscópico, avesso da poesia confessional- comporta um risco: o de que este vazio de identidades fixas, criado a custo pela forma simplificada, pela recusa de ritmos graves e dos labirintos metafóricos ("não há metáforas, veja bem"), acabe ocupado pelos significados cristalizados que procurava expulsar.
O paradoxo só confirma que, em poesia, reinventar os hábitos é tão difícil quanto necessário.


NESTA CIDADE E ABAIXO DE TEUS OLHOS
Autora:
Annita Costa Malufe
Editora: 7Letras
Quanto: R$ 20 (66 págs.)
Avaliação: bom


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