São Paulo, sábado, 29 de março de 2008

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Camponeses perturbam milagre chinês

Livro que descreve situação de 900 milhões de pessoas foi proibido e vendeu até 10 milhões de exemplares clandestinos

Casal passou três anos fazendo reportagens em província e pesquisando a história econômica do mundo agrário da China

RAUL JUSTE LORES
DE PEQUIM

Muito antes de os monges budistas revelarem ao mundo o que a China não quer ver, um casal de escritores constrangeu o Partido Comunista Chinês com o público que lhe é mais caro, o interno.
Em um descuido atípico da censura chinesa, a própria editora do governo publicou "O Segredo Chinês - Milagre Econômico e Vida Rural na China de Hoje", de Chen Guidi e Wu Chuntao. O relato dos desmandos comunistas no vasto e paupérrimo interior do país virou best-seller instantâneo, quando lançado há quatro anos.
Em um país onde a mídia é censurada e martela dia e noite que o país constrói uma "sociedade harmoniosa", o livro causou furor entre a classe média urbana. Vendeu 250 mil cópias, enormidade para não-ficção, até que foi proibido.
Sendo a China como é, a proibição deu lugar a dezenas de versões piratas do livro -estima-se que 10 milhões de exemplares clandestinos tenham sido vendidos no país.
A rotina de pesados impostos, corrupção e muita violência com quem ousa se rebelar é contada em detalhes. Para aumentar a arrecadação, reformar a sede local do partido ou para comprar um carrão ao chefete de plantão, os governos locais chineses criaram dezenas de impostos e taxas em cima dos agricultores.
Em um dos casos reais descritos, um crime é forjado para se colocar na cadeia o líder de um movimento de contestação.
Ele é assassinado na prisão.

900 milhões na sombra
"A história chinesa é de exploração e discriminação dos camponeses, o que continuou com o Partido Comunista, apesar da revolução ter dependido deles", disse Chen Guidi, 64, que também é dramaturgo, à Folha. "Nos últimos três anos, a vida deles melhorou, mas a disparidade entre campo e cidade só aumenta."
O livro trata dos 900 milhões de chineses que estão na sombra do milagre econômico. Cerca de 700 milhões ainda no campo, enquanto os outros 200 milhões viraram retirantes e subsistem na cidade grande, sem a permissão de residência necessária para ter acesso aos serviços públicos.
Ali, trabalham na construção civil de domingo a domingo ou em fábricas que produzem manufaturas para o mundo inteiro em jornadas de 12 horas.
"Esse sistema assegura que os camponeses tenham dificuldade de abandonar o interior e continuem a alimentar a cidade", diz Wu Chuntao, 44, mulher de Chen.

Abuso do baixo clero
Além da miséria, que é aliviada pouco a pouco pelo crescimento econômico chinês, os autores se dedicam a esmiuçar o poder real e a corrupção do baixo clero do Partido Comunista. Eles apresentam vários casos em que novas leis vindas de Pequim para proteger o homem do campo não "pegam" nos governos locais.
"Muitas regras são muito alheias à realidade do interior para serem cumpridas. Em outros casos, os governos locais dizem que aceitam, mas boicotam no dia-a-dia para manter seus benefícios. Não temos um sistema de supervisão para um país tão grande, e temos uma mídia que só reporta as boas notícias, não as ruins", diz Wu Chuntao. "Então, não se sabe o que acontece de errado nem se corrige."
Na apuração do casal, que passou três anos fazendo reportagens em Anhui, província natal de Chen, e pesquisando a história econômica do mundo agrário chinês, eles descobriram que na última dinastia imperial, Qing, havia mil habitantes por funcionário público; em 1998, última estatística coletada pelo livro, eram 40 habitantes por funcionário público.
"A burocracia não parou de crescer. Em algumas prefeituras, só falta ter departamento de relações exteriores", escrevem. "E quantos mais templos, mais budas."


O SEGREDO CHINÊS - MILAGRE ECONÔMICO E VIDA RURAL NA CHINA DE HOJE
Autores:
Chen Guidi e Wu Chuntao
Tradução: Hermano Freitas
Editora: Record
Quanto: R$ 39 (266 págs.)
leia trecho do livro


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