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LITERATURA
Manoel de Barros lança "Ensaios Fotográficos" na Bienal do Livro de São Paulo
A imagem como voz da poesia
MARILENE FELINTO
enviada especial a Campo Grande (MS)
Um poeta de quase um século
de idade lança amanhã, na 16ª
Bienal do Livro de São Paulo, seu
15º livro de uma poesia tão particular, tão coisa tirada das escavações que ele faz na idade da pedra,
no rés do chão e na era dos bichos
e tão refinada por ele mesmo, lápis a lápis, que quase virou grafite, quase gravura, quase pintura
ou fotografia, a "imagem concreta" que ele tanto busca.
Trata-se do premiado pantaneiro Manoel de Barros, 84, o
principal poeta da língua portuguesa em atividade no Brasil, sem
nenhum exagero. Nascido em 19
de dezembro de 1916, em Cuiabá,
casado há 52 anos com Stella Barros, o poeta tem três filhos e sete
netos, escreve a lápis seus poemas
-e vai reunindo sobre sua escrivaninha os tocos de dezenas de
lápis já gastos nesta atividade, como que para experimentar a sensação do dever cumprido, ou o
"livrar-se" dos poemas escritos.
Foi criado em Corumbá e cresceu no Pantanal, de onde tirou toda a matéria dessa poesia que segue no rumo fértil da transformação de tudo em tudo na natureza
da palavra, até atingir o ápice, "o
reino das imagens, da despalavra", como ele diz neste "Ensaios
Fotográficos".
O livro é mesmo "Ensaios Fotográficos", e o título não é nenhuma brincadeira: Barros não permite que suas entrevistas sejam
gravadas em gravadores, mas posa descontraído, feito um menino
exibido, para a fotógrafa. Responde com alegria ao olhar insistente das lentes, sem nenhum
constrangimento.
Em sua casa em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, onde
recebeu a Folha, ele explica que a
intimidade com a fotografia é um
"bugrismo", herança do pai.
"Meu pai era pantaneiro filho
de bugre, que é um índio desaldeado, e todo índio, quando você
vai às aldeias com uma máquina
fotográfica, vem logo para perto,
com a família toda, os filhos, as
mulheres, para ser fotografado.
Eles ficam horas ali fazendo pose,
sem se incomodar. Por isso não
me incomoda a fotografia, porque eu tenho sangue de índio."
Seu único incômodo são as máquinas que gravam, os gravadores e a televisão: "Sou tímido. Sei
que 90% do que falo para o gravador é o que eu não devia falar, e
10% é besteira. Eu me deixei gravar uma única vez e me arrependi
tanto que é para nunca mais falar,
nem morto. Você pode anotar aí,
não falo nem morto, nem para
gravador nem para televisão."
Tão tímido, ele contou, que vomitou na mesa do juiz quando teve de fazer sua primeira audiência como advogado formado, no
anos 40. "Então isso praticamente encerrou minha carreira de advogado", confessa o também fazendeiro Manoel de Barros, criador de gado numa fazenda na região de Nhecolândia, no Pantanal, a sete horas de viagem de
Campo Grande.
Mas se não é possível ouvir a
voz do poeta saindo metálica de
microfones e imprimindo-se feito resposta no jornal, "ouçamos",
como diria ele talvez, suas imagens. Por que fotografia? O autor
de "Gramática Expositiva do
Chão" (1966), "Livro de Pré-Coisas" (1985) e "Livro Sobre Nada"
(1996) comenta seus "Ensaios Fotográficos":
"Fiz esse livro para demonstrar
que a poesia rende melhor quando produz imagens. Alguém disse que o poeta pensa com imagens, a imagem é a voz da poesia.
A partir de "O Fotógrafo", que é o
primeiro poema do livro, pensei
que eu poderia criar umas imagens. Eu acho que o poeta não
gosta do mesmal, gosta de desfigurar e não copiar o mundo, de
ver o mundo diferente."
"Enxergar o mundo do ponto
de vista da criança é ver de novo,
como pela primeira vez, com essa
pureza. Acho que a intenção do
fotógrafo é ver pela primeira vez.
Há esses fotógrafos que são verdadeiros artistas, como Sebastião
Salgado, que tem talento no olho,
descobre ângulos e luzes."
"Então, nesse livro eu vejo que
tentei construir a imagem concreta, fotografar o silêncio como
um personagem, o silêncio que
não tem corpo. Eu gostaria de ter
sido pintor se não fosse poeta. Tenho fascínio pela imagem concreta. Paul Klee, Miró, Van Gogh,
foram todos poetas da pintura."
A casa de Manoel de Barros é de
madeira e vidro, uma casa concreta e bonita. No sofá onde ele se
senta, o assento já ganhou o formato de sua bunda -ele mostra
que é mais afundado ali, no seu
canto predileto na sala.
Lá fora, um céu azul límpido
cobre a cidade toda verde que é
Campo Grande -sente-se mesmo um cheiro de mato, de árvore
e campos quando se desce de um
avião em Campo Grande.
Barros, risonho, fala e não fala
muito de poesia. Pergunto: que
coisas são fotogênicas, afinal, para a poesia? E cito versos seus, do
poema "Mundo Renovado": "Lá
longe, em cima da peúva, o ninho
do tuiuiú, ensopado. Aquele ninho fotogênico cheio de filhotes
com frio." ("Livro de Pré-Coisas").
E Manoel de Barros responde
com uma queixa: "Você está me
fazendo perguntas muito difíceis.
Vamos falar de outra coisa". E começamos a "mexericar". Ele confessa que gosta muito de "mexericos, de conversa fiada", porque
"não existe coisa mais chata do
que a realidade", completa. Foram horas de delicioso mexerico.
Foi a melhor parte da conversa
com esse privilegiado pintor da
palavra.
Livro: Ensaios Fotográficos
Autor: Manoel de Barros
Editora: Record
Quanto: R$ 15 (68 págs.)
Onde: Bienal do Livro, Expo Center Norte
Lançamento: amanhã, às 14h, Editora Record, estande nº 4
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