São Paulo, sábado, 29 de abril de 2000


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LITERATURA
Manoel de Barros lança "Ensaios Fotográficos" na Bienal do Livro de São Paulo
A imagem como voz da poesia

MARILENE FELINTO
enviada especial a Campo Grande (MS)

Um poeta de quase um século de idade lança amanhã, na 16ª Bienal do Livro de São Paulo, seu 15º livro de uma poesia tão particular, tão coisa tirada das escavações que ele faz na idade da pedra, no rés do chão e na era dos bichos e tão refinada por ele mesmo, lápis a lápis, que quase virou grafite, quase gravura, quase pintura ou fotografia, a "imagem concreta" que ele tanto busca.
Trata-se do premiado pantaneiro Manoel de Barros, 84, o principal poeta da língua portuguesa em atividade no Brasil, sem nenhum exagero. Nascido em 19 de dezembro de 1916, em Cuiabá, casado há 52 anos com Stella Barros, o poeta tem três filhos e sete netos, escreve a lápis seus poemas -e vai reunindo sobre sua escrivaninha os tocos de dezenas de lápis já gastos nesta atividade, como que para experimentar a sensação do dever cumprido, ou o "livrar-se" dos poemas escritos.
Foi criado em Corumbá e cresceu no Pantanal, de onde tirou toda a matéria dessa poesia que segue no rumo fértil da transformação de tudo em tudo na natureza da palavra, até atingir o ápice, "o reino das imagens, da despalavra", como ele diz neste "Ensaios Fotográficos".
O livro é mesmo "Ensaios Fotográficos", e o título não é nenhuma brincadeira: Barros não permite que suas entrevistas sejam gravadas em gravadores, mas posa descontraído, feito um menino exibido, para a fotógrafa. Responde com alegria ao olhar insistente das lentes, sem nenhum constrangimento.
Em sua casa em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, onde recebeu a Folha, ele explica que a intimidade com a fotografia é um "bugrismo", herança do pai.
"Meu pai era pantaneiro filho de bugre, que é um índio desaldeado, e todo índio, quando você vai às aldeias com uma máquina fotográfica, vem logo para perto, com a família toda, os filhos, as mulheres, para ser fotografado. Eles ficam horas ali fazendo pose, sem se incomodar. Por isso não me incomoda a fotografia, porque eu tenho sangue de índio."
Seu único incômodo são as máquinas que gravam, os gravadores e a televisão: "Sou tímido. Sei que 90% do que falo para o gravador é o que eu não devia falar, e 10% é besteira. Eu me deixei gravar uma única vez e me arrependi tanto que é para nunca mais falar, nem morto. Você pode anotar aí, não falo nem morto, nem para gravador nem para televisão."
Tão tímido, ele contou, que vomitou na mesa do juiz quando teve de fazer sua primeira audiência como advogado formado, no anos 40. "Então isso praticamente encerrou minha carreira de advogado", confessa o também fazendeiro Manoel de Barros, criador de gado numa fazenda na região de Nhecolândia, no Pantanal, a sete horas de viagem de Campo Grande.
Mas se não é possível ouvir a voz do poeta saindo metálica de microfones e imprimindo-se feito resposta no jornal, "ouçamos", como diria ele talvez, suas imagens. Por que fotografia? O autor de "Gramática Expositiva do Chão" (1966), "Livro de Pré-Coisas" (1985) e "Livro Sobre Nada" (1996) comenta seus "Ensaios Fotográficos":
"Fiz esse livro para demonstrar que a poesia rende melhor quando produz imagens. Alguém disse que o poeta pensa com imagens, a imagem é a voz da poesia. A partir de "O Fotógrafo", que é o primeiro poema do livro, pensei que eu poderia criar umas imagens. Eu acho que o poeta não gosta do mesmal, gosta de desfigurar e não copiar o mundo, de ver o mundo diferente."
"Enxergar o mundo do ponto de vista da criança é ver de novo, como pela primeira vez, com essa pureza. Acho que a intenção do fotógrafo é ver pela primeira vez. Há esses fotógrafos que são verdadeiros artistas, como Sebastião Salgado, que tem talento no olho, descobre ângulos e luzes."
"Então, nesse livro eu vejo que tentei construir a imagem concreta, fotografar o silêncio como um personagem, o silêncio que não tem corpo. Eu gostaria de ter sido pintor se não fosse poeta. Tenho fascínio pela imagem concreta. Paul Klee, Miró, Van Gogh, foram todos poetas da pintura."
A casa de Manoel de Barros é de madeira e vidro, uma casa concreta e bonita. No sofá onde ele se senta, o assento já ganhou o formato de sua bunda -ele mostra que é mais afundado ali, no seu canto predileto na sala.
Lá fora, um céu azul límpido cobre a cidade toda verde que é Campo Grande -sente-se mesmo um cheiro de mato, de árvore e campos quando se desce de um avião em Campo Grande.
Barros, risonho, fala e não fala muito de poesia. Pergunto: que coisas são fotogênicas, afinal, para a poesia? E cito versos seus, do poema "Mundo Renovado": "Lá longe, em cima da peúva, o ninho do tuiuiú, ensopado. Aquele ninho fotogênico cheio de filhotes com frio." ("Livro de Pré-Coisas").
E Manoel de Barros responde com uma queixa: "Você está me fazendo perguntas muito difíceis. Vamos falar de outra coisa". E começamos a "mexericar". Ele confessa que gosta muito de "mexericos, de conversa fiada", porque "não existe coisa mais chata do que a realidade", completa. Foram horas de delicioso mexerico. Foi a melhor parte da conversa com esse privilegiado pintor da palavra.

Livro: Ensaios Fotográficos
Autor: Manoel de Barros
Editora: Record
Quanto: R$ 15 (68 págs.)
Onde: Bienal do Livro, Expo Center Norte
Lançamento: amanhã, às 14h, Editora Record, estande nº 4


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