São Paulo, domingo, 29 de abril de 2007

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Música de Noel Rosa fez 70 anos em 7

Compositor, que morreu há sete décadas, consolidou no intervalo de 1931 a 1937 uma produção que revolucionou o samba

Socióloga vê ligações com modernismo que, para biógrafo, não existiram; letras com críticas à situação do país continuam atuais

Divulgação
Rafael Raposo e Camila Pitanga em cena de "Noel - Poeta da Vila", longa dirigido por Ricardo Van Steen que estréia neste ano


LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Uma pergunta tomou o Carnaval carioca de 1931: "Com que roupa eu vou ao samba que você me convidou?" Apesar do enorme sucesso, só mais tarde se soube que a música tinha sido criada em 1929, quando o autor, Noel Rosa, tinha apenas 19 anos, e que nascera como uma paródia ao hino nacional -constata-se cantando a letra com a melodia do hino.
Sem qualquer pinta de manifesto vanguardista, a música desencadeou um processo revolucionário que Noel consolidaria em apenas sete anos: sofisticação do modo de compor a partir de matéria-prima popular; irreverência e liberdade totais para falar de qualquer assunto, em especial das mazelas nacionais; e afirmação do samba como o gênero-base do país.
A próxima sexta-feira, aniversário de morte de Noel (por tuberculose, aos 26 anos), é o dia em que se poderá dizer: ele realizou 70 anos em sete. Mas, para compositores e ensaístas, ainda se falará em 80 em sete, 90 em sete...
"Daqui a cem anos, ele continuará atual. Todos os que vieram depois nasceram dele", afirma o letrista Paulo César Pinheiro.
"Ele é o pai", confirma Ivan Lins, que gravou há dez anos um CD duplo dedicado à obra de Noel. "Meu trabalho se divide em antes e depois dele. Passei a entender melhor o que é ser um compositor popular."
"Os sambas-de-breque do Moreira da Silva, nos anos 1950, remontavam a Noel. Chico Buarque, nos anos 1960, retomou a matriz da década de 1930 e fez crônicas com personagens populares como Rita e Juca. E quando você ouve Zeca Pagodinho, Noel aparece", diz Carlos Didier, autor, com o jornalista João Máximo, da minuciosa biografia do compositor, lançada em 1990 e atualmente fora de catálogo.
Para Didier, é uma "tentação" ver as realizações de Noel como um desdobramento da Semana de Arte Moderna de 1922. Mas, segundo ele, as idéias sobre cultura popular e experimentação estética expostas no evento em São Paulo só começaram a chegar ao Rio em 1924, e Noel nunca se referiu a elas.
"Ele cita Olavo Bilac, que era poeta parnasiano, mas também, ainda no século 19, um cronista de tipos populares. Essa tradição da crônica carioca vai passar por João do Rio, Lima Barreto, Orestes Barbosa e outros. Noel une essa matriz literária com a melodia que surge no bairro do Estácio, na mesma década de 1920", explica.

Experimentação
No livro "O Violão Azul: Modernismo e Música Popular" (1998), a socióloga Santuza Cambraia Naves defende que, com a volta de Heitor Villa-Lobos, nos anos 1930, a um modelo mais clássico de composição, fica com a turma de autores populares o papel de levar à frente a experimentação.
"Noel não tinha um projeto de ser experimental, mas foi. Usou elementos que os modernistas também usavam, como paródias, citações e a metalinguagem. Em "Gago Apaixonado", música e letra se comentam o tempo todo", exemplifica Naves.
Para ela, esse uso livre de recursos variados pode ser encontrado hoje mesmo num compositor tão ligado a tradições (de samba e choro) como Paulinho da Viola. Mas, na época, foi uma grande inovação, assim como foi um branco de classe média, que chegou a estudar medicina, subir os morros para ser parceiro de sambistas pobres (Ismael Silva, Cartola e outros).
"Ele aproximou extremos até então não-comunicantes: brancos, ricos e famosos com negros, ferrados e talentosos", corrobora o cineasta Ricardo Van Steen, que, após 12 anos de esforços, estreará "Noel - Poeta da Vila" neste ano. "Se não fosse ele, isso não teria acontecido tão rápido."

"Feitiço decente"
Em sete anos, Noel "urbanizou" a música brasileira, como ressalta Ruy Castro, e lutou, à sua moda irreverente, para dissociar o samba do estigma de coisa-de-malandro, transformando-o em "feitiço decente" -expressão significativa que ele cunha em "Feitiço da Vila" e que dá título a um importante livro do musicólogo Carlos Sandroni.
O que também continua atual, mas não se pode dizer que felizmente, é o Brasil retratado em muitos de seus sambas, como "Quem Dá Mais?", "Não Tem Tradução", "Onde Está a Honestidade?", "O Orvalho Vem Caindo" e, é claro, "Com que Roupa?": leiloeiro de si próprio, provinciano ao babar por tudo aquilo que vem de fora, e com muita corrupção e pobreza.
"Ou ele é genial e comentou o nosso presente e o nosso futuro, ou nada mudou em relação aos comentários que fez sobre o Brasil. São ambas as coisas, na verdade", constata/lamenta Jards Macalé, que gravou e canta algumas dessas críticas tão ácidas quanto divertidas ao país.


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