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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Os livros imaginários de Steiner
Fazer amor não é só uma questão de sotaque, mas também de imaginário
e temperamento
JÁ TINHA pensado no assunto: o
amor é diferente quando é falado por línguas diferentes. O
mesmo ato, a mesma cama, os mesmos corpos, mas a narrativa é distinta, porque distinta é a língua, e os tabus, e as expressões de excitação, e
as palavras sussurradas ou gritadas
que habitam a boca dos amantes.
"Vou gozar", "estou-me a vir": fazer
amor em português (do Brasil) ou
em português (de Portugal) não é
apenas uma questão de sotaque,
mas de imaginário, temperamento,
tradição.
E, no entanto, não existe um estudo sobre o fenômeno. Quando o assunto é sexo, abundam imagens,
descrições, banalidades. Clichês.
Mas falta uma poética do eros, capaz
de revelar o que uma língua transporta para a intimidade. Como será
um orgasmo em russo ou em mandarim? Como se excitam, verbalmente falando, os amantes da Islândia ou da Patagônia? E que palavrões fazem sucesso na Grécia ou no
Irã? Daria tudo para viajar pelo
mundo e construir uma enciclopédia a respeito, uma espécie de tratado sobre a estrutura semântica da
sexualidade.
Não sou caso único. E, se escrevi
que já tinha pensado sobre o assunto, foi por que li o último livro de
George Steiner, "My Unwritten
Books" (Weidenfeld & Nicolson, 210
págs.). De que trata o livro de Steiner? Como o próprio título revela,
de todos os livros que ele não escreveu. São sete livros, convertidos em
sete ensaios e reunidos numa só
obra. Que pena não termos os sete
em sete volumes distintos.
Temos uma meditação sobre "as
línguas do eros", sim, e Steiner partilha com os leitores as suas pessoalíssimas experiências com quatro línguas distintas. Primeiras conclusões: as mulheres alemãs têm uma
certa propensão pelo escatológico e
pelo infantil; nada de comparável à
perversidade das francesas, que
mantêm o tratamento deferencial
mesmo em situações de pouca
deferência.
E depois Steiner avança por mais
seis livros imaginários. Existe de tudo: meditações sobre a política e a
religião; sobre o ensino e o lugar da
cultura "humanista" nos alvores de
um novo século; sobre as relações
entre os homens e o mundo animal;
e ainda um estudo sobre Joseph
Needham, nome esquecido ou ignorado, um "homo universalis" que, ao
longo do século 20, soube tocar todos os instrumentos -química, biologia, estudos orientais, lingüísticos,
culturais.
Dois ensaios, porém, merecem referência especial. Para além das "línguas do eros", texto prodigioso por
conta da inteligência aveludada de
Steiner, o autor confronta ainda dois
temas dolorosos e especialmente
pessoais que teriam rendido dois livros de exceção.
O primeiro deles lida com a condição judaica, ou seja, com a condição
do próprio Steiner. Como definir
um "judeu"? E como explicar a existência, e a persistência, do anti-semitismo na história?
Steiner reserva aos judeus uma relação especial e vital com a palavra
escrita; mais do que a religião ou a
"raça" (termo equívoco, eu sei), é a
cultura, e sobretudo uma cultura
"rabínica" de debate, que estrutura a
identidade judaica ao longo dos
tempos.
E, ao longo dos tempos, o que parece explicar o anti-semitismo não é
a acusação ortodoxa, e hoje remetida para as catacumbas do subconsciente cristão, de um deicídio passado. Para Steiner, o "crime" dos judeus não foi terem "matado" Deus;
foi, pelo contrário, terem "inventado" Deus, ou seja, terem "inventado" o insuportável juiz da conduta e
da consciência dos homens.
E se, depois de tudo isso, vocês
sentem inveja do talento e da erudição de Steiner, é natural: o último
grande ensaio é, precisamente, sobre a inveja, o mais comum (e inconfessável) sentimento entre intelectuais. O próprio Steiner não é exceção e, com pungente candura, confessa ao leitor como é doloroso ouvir
os telefonemas da Academia Sueca
quando eles tocam no gabinete do
lado.
Nada de novo, claro. E, a esse respeito, Steiner relembra a história de
Francesco Stabili, conhecido na história da literatura como Cecco d'Ascoli, o autor de um épico incompleto
("Accerba") que, em 1327, seria condenado à fogueira por ensinar "cose
vade e contra fede". Mas, para Steiner, a fogueira mais dolorosa para
Cecco não foi a das chamas inquisitoriais; foi saber que, na mesma cidade, vivia um tal de Dante Alighieri.
As perguntas são inevitáveis: como escrever poesia ou teatro e viver
na Florença de Dante ou na Londres
de Shakespeare? E, já agora, como
escrever crônicas ou ensaios e viver
no mesmo tempo de Steiner?
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