São Paulo, terça-feira, 29 de abril de 2008

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Os livros imaginários de Steiner

Fazer amor não é só uma questão de sotaque, mas também de imaginário e temperamento

JÁ TINHA pensado no assunto: o amor é diferente quando é falado por línguas diferentes. O mesmo ato, a mesma cama, os mesmos corpos, mas a narrativa é distinta, porque distinta é a língua, e os tabus, e as expressões de excitação, e as palavras sussurradas ou gritadas que habitam a boca dos amantes. "Vou gozar", "estou-me a vir": fazer amor em português (do Brasil) ou em português (de Portugal) não é apenas uma questão de sotaque, mas de imaginário, temperamento, tradição.
E, no entanto, não existe um estudo sobre o fenômeno. Quando o assunto é sexo, abundam imagens, descrições, banalidades. Clichês. Mas falta uma poética do eros, capaz de revelar o que uma língua transporta para a intimidade. Como será um orgasmo em russo ou em mandarim? Como se excitam, verbalmente falando, os amantes da Islândia ou da Patagônia? E que palavrões fazem sucesso na Grécia ou no Irã? Daria tudo para viajar pelo mundo e construir uma enciclopédia a respeito, uma espécie de tratado sobre a estrutura semântica da sexualidade.
Não sou caso único. E, se escrevi que já tinha pensado sobre o assunto, foi por que li o último livro de George Steiner, "My Unwritten Books" (Weidenfeld & Nicolson, 210 págs.). De que trata o livro de Steiner? Como o próprio título revela, de todos os livros que ele não escreveu. São sete livros, convertidos em sete ensaios e reunidos numa só obra. Que pena não termos os sete em sete volumes distintos.
Temos uma meditação sobre "as línguas do eros", sim, e Steiner partilha com os leitores as suas pessoalíssimas experiências com quatro línguas distintas. Primeiras conclusões: as mulheres alemãs têm uma certa propensão pelo escatológico e pelo infantil; nada de comparável à perversidade das francesas, que mantêm o tratamento deferencial mesmo em situações de pouca deferência.
E depois Steiner avança por mais seis livros imaginários. Existe de tudo: meditações sobre a política e a religião; sobre o ensino e o lugar da cultura "humanista" nos alvores de um novo século; sobre as relações entre os homens e o mundo animal; e ainda um estudo sobre Joseph Needham, nome esquecido ou ignorado, um "homo universalis" que, ao longo do século 20, soube tocar todos os instrumentos -química, biologia, estudos orientais, lingüísticos, culturais.
Dois ensaios, porém, merecem referência especial. Para além das "línguas do eros", texto prodigioso por conta da inteligência aveludada de Steiner, o autor confronta ainda dois temas dolorosos e especialmente pessoais que teriam rendido dois livros de exceção.
O primeiro deles lida com a condição judaica, ou seja, com a condição do próprio Steiner. Como definir um "judeu"? E como explicar a existência, e a persistência, do anti-semitismo na história?
Steiner reserva aos judeus uma relação especial e vital com a palavra escrita; mais do que a religião ou a "raça" (termo equívoco, eu sei), é a cultura, e sobretudo uma cultura "rabínica" de debate, que estrutura a identidade judaica ao longo dos tempos.
E, ao longo dos tempos, o que parece explicar o anti-semitismo não é a acusação ortodoxa, e hoje remetida para as catacumbas do subconsciente cristão, de um deicídio passado. Para Steiner, o "crime" dos judeus não foi terem "matado" Deus; foi, pelo contrário, terem "inventado" Deus, ou seja, terem "inventado" o insuportável juiz da conduta e da consciência dos homens.
E se, depois de tudo isso, vocês sentem inveja do talento e da erudição de Steiner, é natural: o último grande ensaio é, precisamente, sobre a inveja, o mais comum (e inconfessável) sentimento entre intelectuais. O próprio Steiner não é exceção e, com pungente candura, confessa ao leitor como é doloroso ouvir os telefonemas da Academia Sueca quando eles tocam no gabinete do lado.
Nada de novo, claro. E, a esse respeito, Steiner relembra a história de Francesco Stabili, conhecido na história da literatura como Cecco d'Ascoli, o autor de um épico incompleto ("Accerba") que, em 1327, seria condenado à fogueira por ensinar "cose vade e contra fede". Mas, para Steiner, a fogueira mais dolorosa para Cecco não foi a das chamas inquisitoriais; foi saber que, na mesma cidade, vivia um tal de Dante Alighieri.
As perguntas são inevitáveis: como escrever poesia ou teatro e viver na Florença de Dante ou na Londres de Shakespeare? E, já agora, como escrever crônicas ou ensaios e viver no mesmo tempo de Steiner?


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