São Paulo, sábado, 29 de maio de 2004

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LIVROS/LANÇAMENTOS

Flávio Tavares reúne lembranças dos bastidores da política

O poder como novela move memórias de jornalista

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

O título pode remeter a uma ficção. Até porque, se verdadeiro fosse, estaríamos diante de um fato que mudaria a história política da América Latina no século 20.
Mas "O Dia em que Getúlio Matou Allende", do jornalista gaúcho Flávio Tavares, 70, não é um romance. Aproxima-se sim de algo a que se pode chamar de reportagem memorialística, em que fatos históricos misturam-se a observações, impressões e conclusões do próprio autor. No epílogo do livro, Tavares explica assim o seu propósito: "Pensei em dois suicidas, aos quais me vi unido pelo acaso e entre os quais fantasiei ter estabelecido uma ponte".
Tudo começa em 1954, quando Tavares era um jovem líder estudantil em visita à China para o 5º aniversário da revolução comunista. Em Pequim, conhece o então vice-presidente do Senado chileno, Salvador Allende, que lhe pede detalhes sobre o suicídio de Getúlio Vargas, ocorrido dias antes, no Rio. Pouco depois, ambos voltam a se encontrar, no meio de uma agitada rua de Xangai, e Allende teria dito em seu ouvido: "Me impresionó lo del suicidio".
Dezenove anos mais tarde, quando Allende, agora presidente socialista do Chile, caía diante de um levante militar e cometia ele também suicídio, Tavares lembrou-se daquela frase. Para o jornalista, ao saber que Vargas se matara, Allende teria se convencido de que "só o sacrifício eterniza o poder" e disso teria se lembrado antes de dar fim à própria vida.
O episódio abre a coletânea de textos de Tavares. Seguem-se capítulos sobre os bastidores do poder nos governos de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart. "Quero chamar a atenção para o significado dessas novelas do poder. Por trás, está a minha sensação, que cabe a todos os retratados, de que há uma impenetrabilidade no poder", disse, em entrevista à Folha.
Na segunda parte do livro, Tavares introduz episódios e personagens internacionais, como Frida Kahlo, Che Guevara, De Gaulle, Perón e Stálin.
Tavares foi repórter político nas décadas de 60 e 70. Manteve uma coluna no jornal "Última Hora" e foi preso durante a ditadura. Integrou o grupo dos presos políticos libertados em 1969 por exigência dos seqüestradores do embaixador americano Charles Burke Elbrick. Viveu, então, no México, onde foi repórter do jornal "Excelsior", e passou 18 anos em Buenos Aires, onde foi correspondente de alguns meios de comunicação, inclusive da Folha.
Em 2000, ganhou um Prêmio Jabuti com "Memórias do Esquecimento" (ed. Globo), sobre as prisões da ditadura militar.
Tavares disse que escreveu "O Dia em que Getúlio Matou Allende" como uma advertência para o fato de o debate político estar perdendo a importância que costumava ter na sociedade. "O exercício da política virou uma farsa. Naquela época, havia erros, mas pelo menos as posições políticas eram claras. Agora, em toda a América Latina, o poder é uma imagem e se faz qualquer coisa para chegar a ele."
Para Tavares, um exemplo do enfraquecimento do poder da palavra é que, hoje, seria quase impossível surgir alguém como o jornalista Carlos Lacerda. "Era um ansioso, representava certa paranóia pelo poder e era frontal. Em termos éticos e pessoais, sempre foi correto. Só queria o poder pelo poder. Nunca fez uma negociata e arrebanhava suas ovelhas pela palavra. Um Lacerda hoje talvez fosse impossível. Ainda que, sem dúvida, necessário."
No capítulo dedicado a Vargas, Tavares, utilizando de imaginação e de recursos literários ("em frações de segundos, na escuridão do quarto, todo o passado de culpas ia e vinha pela memória de Getúlio"), indaga-se sobre o que teria o presidente pensado horas antes de suicidar-se.
Por essa brecha, insere informações sobre o chefe da guarda pessoal do presidente, Gregório Fortunato. Tavares defende que Fortunato decidiu orquestrar o atentado contra Lacerda por ter se cansado de ouvir pessoas próximas a Vargas dizerem que o jornalista deveria morrer.
Já o capítulo dedicado a Jango é o mais rico em detalhes. Além de sua vivência do período, Tavares diz ter se baseado, para reconstruí-lo, nas conversas que manteve com o presidente deposto na época em que ambos estavam exilados em Buenos Aires, entre os anos de 1974 e 1976.
O jornalista relata, por exemplo, a curiosa visita oficial de Jango, em 1962, a uma base militar em Omaha, nos EUA, onde se fazia o controle de mísseis nucleares. "Jango fez brincadeiras com o general que o acompanhava, que se entusiasmou e mostrou mais coisas a ele do que as que estavam previstas no programa", conta. Tavares relata que Jango não entendeu por que lhe mostravam aquilo. "Foi preciso que se passassem dois anos para que entendesse tudo, a 1º de abril de 1964."


O DIA EM QUE GETÚLIO MATOU ALLENDE. Autor: Flávio Tavares. Editora: Record. Quanto: R$ 41,90 (327 págs.). Lançamento: dia 31, às 19h30, na Livraria da Travessa (r. Visconde de Pirajá, 572, Ipanema, Rio); dia 7 de junho, às 19h, na livraria Cultura (Conjunto Nacional, avenida Paulista, 2073, SP).


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