São Paulo, sábado, 29 de maio de 2010

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Após conselhos, professora conquista Jabuti

Orientação de Drummond levou amiga que o conheceu por carta a ganhar troféu de autor revelação em 1984

Remetentes do poeta guardam com zelo a correspondência trocada e alguns fazem livros e cursos

DO ENVIADO A SÃO JOÃO DA BOA VISTA

Em 1980, abalada pela leitura do poema "A Morte a Cavalo", que lhe evocou perdas familiares, a professora particular Yola Azevedo, de São João da Boa Vista (SP), escreveu uma carta ao autor, Carlos Drummond de Andrade.
O poeta respondeu: "Quero agradecer comovidamente suas palavras tão espontâneas e amigas. "A Morte a Cavalo" resulta da experiência de uma vida já longa, em que as perdas de seres amados não são compensáveis por afeições novas. Sou o sobrevivente da família; meus cinco irmãos partiram, inclusive a irmã mais nova do que eu".
Eles nunca tinham se visto. Foi o início de uma amizade ancorada por correspondência que durou até a morte de Drummond, em 1987.
Chegaram a se encontrar algumas vezes no Rio, mas, ela mesma admite, "era muito melhor por carta, não tinha urgência de tempo".

INCENTIVADOR
Percebendo o bom texto da amiga, o poeta a estimulou a escrever.
Yola hesitou, mas acabou por mandar a ele os originais de um romance. Numa longa carta em 1982, após ler o primeiro capítulo, Drummond deu à amiga quase uma oficina literária por via postal.
São dicas como: "Dizer por exemplo que uma sucessão de mortes "é incrível", está bem quando é a pessoa imaginária quem fala, mas para o escritor nada é incrível, inenarrável, assombroso".
"Os adjetivos desse tipo são uma fuga à obrigação de definir o fato ou a sensação. Uma sucessão de mortes, brutal e imprevista que seja, pode ser contada também de maneira brusca e seca: "Perdeu o irmão num acidente, o pai de infarto, a mãe de trombose. Em três meses." (Ou cinco, ou seis). (...) Já o leitor, vendo isso, tem o direito de dizer: "É incrível!'".
Ou: "Acho bom, também, evitar expressões estereotipadas, como "divino milagre" (todo milagre é divino), "fazer das tripas coração" (...), que são lugares-comuns. Deixar de lado, igualmente, citações desnecessárias, como a do inferno de Dante, que se popularizou e é usada por todo mundo que nunca se aproximou da "Divina Comédia". Citação é ótima quando totalmente inesperada".
Yola acatou tudo. Lançou "A Reconquista" em 1984 e ganhou com ele o prêmio Jabuti de autor revelação.
A professora conserva em casa, organizadas em pastas, dezenas das cartas de Drummond, todas carregadas de afeto e gentileza.
Mas nunca guardou o que escreveu para ele. A reportagem leu o trecho de uma carta dela a ele, pinçada no arquivo do Rio: "Mas nossos afetos deveriam ser eternos e, cada vez que me fala dessa dor no peito, a dor se desdobra aqui no meu peito, feito um arrancamento a frio".

VAMOS PARAR POR AÍ
Yola interrompeu, com a voz embargada ("Vamos parar por aí"), e não ouviu o trecho final, quando escreveu: "Através de sua ajuda eu ressuscitei, eu renasci (...). Bendita a hora em que nos encontramos -bendito encontro, meu Deus, que me permitiu a segunda chance".
Ao que Drummond retrucou: "Yola, Yola, não exageremos, querida. Não fui eu que fiz você ressuscitar".
Em 1988, após a morte de Drummond, a professora escreveu outro romance, este sem a orientação do amigo. Considera-o péssimo e tem vontade de queimar os exemplares que restam.
"No fim escrevi só por ele e para ele, a verdade é essa."
A frase soa duplamente verdadeira, quando se sabe que Yola não fez o que fizeram muitos "amigos de cartas" de Drummond, publicando a correspondência com ele ou mantendo por outros meios a memória da amizade ilustre.
É o caso da artista plástica Anna Maria Badaró, de Campinas. Ela escreveu durante anos cartas ao poeta que nunca teve coragem de mandar. Um dia leu uma crônica na qual Drummond dizia que, nos dias de chuva, gostava de rasgar papeis.
Anna Maria supôs que ele rasgaria as cartas dela, criou coragem e enviou.
Manteve até a morte a amizade epistolar com o poeta, que sempre lhe foi afetuoso.
A artista tem espalhadas por sua casa telas que pintou de Drummond. Em 2003 escreveu um livro ("Drummond Inesgotável") e dá workshops sobre o escritor e a sua história com ele.
Edmílson Caminha é outra testemunha da solicitude de Drummond que transformou em livro a experiência ("A Lição do Poeta").

DOCE DE CAJU
Ensinava português e literatura em colégios de Fortaleza em 1978, quando enviou ao poeta um livro de versos que publicara. Em resposta, Drummond agradeceu a "boa carta" e "a poesia jovem". "Ele foi educado, era um cavalheiro, porque a poesia era ruim mesmo", reconhece o admirador, jornalista concursado que hoje escreve discursos na Câmara dos Deputados.
Caminha insistiu nas cartas (também mandava às vezes doce de caju), teve todas respondidas e tornou-se amigo leal do poeta. Drummond fez versinhos para as filhas do professor, o recebeu em casa no Rio, concedeu-lhe uma longa entrevista, publicada em 1984 no "Diário do Nordeste", de Fortaleza.


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