São Paulo, sábado, 29 de junho de 2002

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"A SEREIA VERMELHA"

Francês transpõe sua visão da cybercultura para romances que se movem entre crime, guerra e morte

Dantec abre sua literatura "diabólica"

Reuters
Imagem de região fronteiriça de Exércitos rivais em Sarajevo, um dos cenários do romance "A Sereia Vermelha", do escritor francês Maurice Dantec, que chega ao Brasil pela editora Objetiva


CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN

Um pós-punk desempregado recebe uma encomenda para escrever um thriller "noir" que obtém uma boa repercussão. Quase uma década e três romances depois, Maurice G. Dantec, 42, se transformou em um dos principais nomes da ficção futurista.
Em seu universo, a paranóia tecno-militar e o contra-poder terrorista são as armas ambivalentes nas mãos da elite financeira global. E a tecnologia é tratada como a mola-mestra da nova fase da história, a ferramenta capaz de produzir tanto novas forças físicas quanto inesperadas mutações morais.
Depois de "A Sereia Vermelha", sua literatura firmou-se nos mais ousados "Les Racines du Mal" (Raízes do Mal) e "Babylon Babies", com os quais sua associação ao universo da cyberliteratura, capitaneada por William Gibson, tornou-se mais evidente.
Dantec não recusa a filiação, mas é mais fácil encontrar em seu DNA literário os genes de Philip K. Dick e de J.G. Ballard.
Leia abaixo trecho da entrevista concedida por Dantec à Folha.

Folha - Antes de se tornar escritor, você foi músico. Como aconteceu a passagem à literatura?
Maurice G. Dantec -
Minha passagem à literatura aconteceu após uma situação de desemprego e durante a Guerra do Golfo, que foi um acontecimento determinante para essa decisão. Fiz música, punk rock e cold wave, entre 77 e 83, depois, entre 87 e 90, trabalhei como redator em agências de publicidade. A primeira guerra cibernética da história, confrontada à inatividade forçada, me fez refletir sobre minha condição e isso resultou em uma recusa de me comprometer com a alienação mercantil e sobretudo com a indústria que se ocupa de propagandeá-la.

Folha - "A Sereia Vermelha" é um thriller fácil (e emocionante) de ler. Você busca deliberadamente produzir uma literatura popular?
Dantec -
Durante a Guerra do Golfo produzi um esboço de um livro que só agora estou concluindo. Na época, diante da recusa de editores, mas com a porta aberta por Patrick Raynal, diretor da "Série Noire" [coleção de romances policiais publicada pela editora francesa Gallimard", eu escrevi "A Sereia Vermelha" em seis meses, em troca de um pequeno adiantamento sobre os direitos, o que me permitiu imaginar um futuro mais interessante do que ser empregado de telemarketing, ou pior, professor colegial.
Não recuso a etiqueta "pop". Tive a oportunidade de produzir, como alguns músicos de rock, livros mais "pop" que outros.

Folha - Você define sua literatura como "diabólica". O que é isso?
Dantec -
Minha literatura é matriz produtiva na qual eu insiro as coordenadas do mundo contemporâneo. Esse é um mundo da técnica, um mundo "demiúrgico", "demoníaco", que nem sempre escapa dos princípios da natureza. Nossa ciência não nos conduziu a nenhuma real transformação antropológica. Nós vivemos integralmente, como Nietzsche já sabia há mais de um século, sob o reino totalizado dos "humanismos" socialistas ou mercantis, sob o reino do homem-demiurgo, o homem da dialética moderna, depois pós-moderna. Esse homem mostrou do que era capaz durante o século 20. O século 21 é bastante promissor para o diabo.

Folha - Eva K. é uma assassina e uma mulher de negócios. Na sua visão, crime e capitalismo são indissociáveis?
Dantec -
Toda sociedade de produção está baseada em um crime original. A Bíblia ensina isso. Também sobre isso Georges Bataille foi bastante claro. E Freud. O capitalismo não é mais inocente ou mais culpado do que qualquer das outras civilizações da escrita que o antecederam. Toda literatura se concentra na questão do crime. Toda literatura autêntica conta a história de um pacto secreto com a morte, toda literatura é uma literatura "noir".

Folha - "A Sereia Vermelha" é assombrado pelo fantasma da Bósnia. Depois disso, testemunhamos os massacres em Kosovo, o 11 de setembro, as ocupações israelenses de territórios palestinos. Você acredita que já estamos vivendo uma era de quase apocalipse?
Dantec -
Será que ninguém se deu conta de que "quatro" cavaleiros de fogo surgiram no céu, pela manhã, na Costa Leste dos Estados Unidos há quase um ano?
O Armagedon, na minha opinião, aconteceu e ousar afirmar isso acarretou receber comentários bastante desagradáveis na imprensa bem pensante francesa. Mas eu gostaria de lembrar que minha constatação da "morte do homem" nem é uma idéia nova. Michel Foucault, por exemplo, entre muitos outros, já havia apontado esse fato há mais de 30 anos.
Vivemos uma semi-vida de adoração ao ídolo tecno-mercantil pelo menos desde 1945. No 11 de setembro, um sinal apareceu no encefalograma feito em nossas civilizações pós-modernas e humanitárias. Esperamos que ele permaneça e que o paciente, a qualquer momento, desperte.


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