São Paulo, sábado, 29 de junho de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

"O TERROR"

Gênero que fez da arquitetura gótica uma estrutura narrativa ganha dimensão nova no texto do autor galês

Arthur Machen recria horror a céu aberto

ELIANE ROBERT MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O castelo mal-assombrado foi, durante muito tempo, cenário privilegiado dos contos de terror. No início do século 19, o "roman noir", também chamado de gênero gótico, fez milhares de leitores mergulharem em suas páginas sombrias para acompanhar as desventuras de inocentes heroínas que, perseguidas por sanguinários vilões, viviam enclausuradas em sinistras fortalezas medievais.
Palco de vinganças, assassinatos, paixões proibidas e revelações inconfessáveis, as arquiteturas góticas fundaram a moderna literatura de horror, firmando as convenções de um gênero no qual, segundo Paul Éluard, "o castelo é o herói".
Lugar arcaico e ponto de partida da modernidade, essas construções imaginárias foram objeto de inúmeras recriações, entre as quais figuram a sinistra casa de Usher, de Edgar Allan Poe, e a soturna mansão do conde Drácula, de Bram Stoker. Não deixa de ser curioso, portanto, que um dos grandes mestres do gênero, o galês Arthur Machen (1863-1947), tenha privilegiado os cenários a céu aberto em suas histórias sobrenaturais.
Um avião é derrubado por um bando de bombos; uma adolescente é encontrada despedaçada sobre um rochedo; um navio desaparece sem deixar sinal de vida; corpos em decomposição são descobertos em uma aldeia. Esses são alguns dos episódios inexplicáveis que o Dr. Lewis, narrador e principal personagem de "O Terror", busca desvendar ao longo da narrativa, para enfim descobrir um inusitado elo entre eles.
O romance, que apresenta o autor ao público brasileiro, é ambientado em região afastada do oeste de Gales, durante a Primeira Guerra Mundial. Na medida em que os terríveis acontecimentos se passam em espaços abertos, e não mais na clausura de um castelo, sua ocorrência deixa de ser apenas a expressão interior da maldade humana para expor as dimensões exteriores de um mal que se alastra por toda a coletividade.
O texto trava diálogo denso com atrocidades da guerra, denunciando a miséria da condição humana em tempos bélicos. Menos que as cenas de terror, são as hipóteses levantadas pelo médico e por seus companheiros que dão o ponto alto da narrativa.
Por isso mesmo, "O Terror" pode ser qualificado como uma "fantasia de guerra", para utilizarmos a expressão de José Antonio Arantes, que assina o posfácio ao livro. Machen já havia se dedicado ao tema em outras obras, entre as quais "The Angels of Mons", um conto sobre fantasmas de velhos arqueiros ingleses que teriam salvado as forças britânicas em 1914. Tomada por verdadeira, a história dos "anjos de Mons" deu origem a uma lenda que ganhou fama durante a Primeira Guerra, passando a figurar na mitologia popular da Inglaterra.
Contudo, embora tenha conseguido a proeza de perpetuar uma de suas histórias no imaginário inglês, o escritor galês ainda é pouco conhecido. Elogiada por Wilde, Lovecraft e Borges, sua extensa obra continua sendo lida sobretudo por aficionados do gênero, que reconhecem nela um vigoroso traço de inovação.
Se Machen ocupa um lugar especial na literatura fantástica, é porque negligenciou as convenções ordinárias do sobrenatural. Prova disso está nas prosas poéticas incluídas neste livro sob o título "Ornamentos de Jade", que se valem de temas das mitologias pagãs e de referências panteístas. Contudo, seu maior mérito foi o de ter trazido para a luz do sol cenas que até então só se desenrolavam nas penumbras dos castelos mal-assombrados, ampliando os efeitos do que ele chamou de "a mão invisível do terror".


Eliane Robert Moraes é professora de Estética e Literatura na PUC-SP, e autora de, entre outros, "Sade: A Felicidade Libertina" (Imago).



O Terror
The Terror
   
Autor: Arthur Machen
Tradutor: José Antonio Arantes
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 29 (192 págs.)




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