|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Desenhos ingênuos, sinfonias simplórias
Quando se fala em Walt
Disney, o que vem à mente
na hora são os personagens arquiconhecidos: Mickey, Donald,
Pateta, Tio Patinhas. Mas uma
bonita caixa de metal prateado
com dois DVDs, à venda nas locadoras, traz uma boa quantidade
de desenhos antiqüíssimos, quase
pré-históricos, ou "pré-Pato Donald", dos estúdios Disney.
Feitos durante a década de 30,
atendem pelo nome de "Silly
Symphonies", ou "Sinfonias Ingênuas", como diz a capa em português. Talvez fosse melhor traduzir
para "Sinfonias Simplórias".
Na coleção, há alguns clássicos
que eu nunca tinha visto, como
"Os Três Porquinhos", de 1933, ou
a estréia de Donald em "A Galinha Sábia", de 1935.
Algumas poucas cenas ou desenhos sobreviviam, não sei bem como, num inconsciente televisivo
de imagens em preto-e-branco.
Inscrevem-se na memória de certas tardes de férias com muita
chuva, a que assombravam objetos dançantes, telefones fora de
moda franzindo as sobrancelhas,
banquetas e sofás despertando de
seu sono para sapatear sobre o assoalho, luminárias que se curvam
em reprimendas e desaparecem
de repente.
Também nesse passado de espantos, silêncios e tumultos esconde-se uma ou outra imagem
de desenhos animados ainda
mais antigos, provavelmente
alheios a tudo o que Disney inventaria depois: penso naqueles
momentos de sadismo primordial, ainda imitado do teatro do
século 19, em que vilões de grandes chapéus pretos retorcem os bigodes depois de amarrar a mocinha nos trilhos do trem ou na esteira rolante de uma serraria, cujo motor, ora lento, ora velocíssimo, tornaria inaudíveis (mas tudo era mudo, acho, nessa época)
os gritos de desespero e os apelos
lacrimosos da vítima.
Mas esse mundo sinistro é anterior, como eu disse, às "Sinfonias
Ingênuas", que são na maior parte em technicolor e já mostram o
apuro de vista, a flexibilidade de
movimentos e a graça de invenção dos grandes longas-metragens da Disney, como "Branca de
Neve" (1937) e "Pinóquio" (1940).
Só um desenho destes agora
reunidos em DVD guarda para
mim um pouco daquelas lembranças desconfortáveis dos programas de TV vistos na infância.
Trata-se de "O Mundo da Música", uma historinha em que um
rei e um príncipe em forma de saxofone terminam casando com
uma rainha e uma princesa em
forma de violoncelo depois de
uma batalha tremenda entre a
"Terra da Sinfonia" e a "Ilha do
Jazz". Havia algo de desajeitado,
de "difícil" e, se posso empregar o
termo, de "desinfantil" naquela
situação.
O máximo de fluência, musicalidade e despropósito, entretanto,
pode ser visto em desenhos como
"A Arca de Noé" ou "Coelhinhos
Engraçadinhos". Neste último, registra-se o que seria uma grande
fábrica de ovos de Páscoa ao ar livre, mobilizando uma equipe eficientíssima de coelhos que não
param de seguir a música enquanto cumprem suas tarefas:
derreter barras de chocolate, rechear, embrulhar, transportar
ovos sem fim.
Também um quadro de hiperatividade suavíssima, sem dor nem
acidentes que não sejam cômicos,
é o que se representa em "A Arca
de Noé". A construção do barco é
coordenada por um Noé engenheiro, com um rolo de plantas de
pergaminho em punho; seus três
filhos, com as vestes bíblicas cobertas de remendos, organizam o
trabalho geral da bicharada. Rinocerontes racham pranchas de
madeira, hipopótamos perfuram
tábuas com os dentes, macacos
tomam conta da tela montando
peças do navio, pica-paus martelam o revestimento do casco.
E não há propriamente enredo
nesses desenhos. Vemos simplesmente a construção da arca, as
dificuldades pontuais da empreitada de salvação: um elefante que
não cabe na cabine, um burrico
que se recusa a embarcar, os gambás com quem os bichos não querem conviver. Depois, o óbvio: 40
dias de chuva, o sol voltando, o
desembarque. No desenho dos
coelhinhos, nem isso: apenas as
variedades de uma mesma atividade produtiva e nada mais.
Talvez o segredo desses desenhos seja o fato de retratarem,
numa época de depressão econômica, a atividade industrial como
um empreendimento feliz, coordenado, coletivo, utópico. Ao
mesmo tempo, tudo parece natural: como se a Natureza, ela própria, dispusesse de um cérebro de
engenheiro, capaz de construir as
mais fantasiosas e eficientes máquinas a partir de pássaros, abelhas, lírios e margaridas.
Em várias dessas "Sinfonias Ingênuas" -mas não em todas-,
chama a atenção a ausência de
moralidade, de pedagogia. Atualmente, as histórias infantis parecem ter sempre necessidade de
um vilão: no "Aladim", da própria Disney, o feiticeiro malvado
Jafar é o eixo incansável da história. O sítio do Pica-Pau Amarelo,
nos livros de Monteiro Lobato,
nunca viveu sob o constante assédio da Cuca, como acontece na
minissérie de TV.
Obviamente, não é de hoje que
o Lobo Mau persegue os Três Porquinhos ou que a Bruxa tenta
matar Branca de Neve. Mas um
divertimento sem vilões, pura
dança de folhas, galinhas ou biscoitos (penso em "The Cookie
Carnival"), faz muito bem de vez
em quando. Vemos, nesses desenhos mais antigos, a pura reação
instintual de cachorros, patos e
pingüins desenvolver-se numa
mecânica perfeita, científica, de
brinquedo de corda. A luta pela
vida se firma ao lado da civilização técnica. As adaptações infinitas da forma orgânica e a prevalência esfuziante das leis de causa
e efeito, o mundo de Darwin e o
de Newton, o mundo das fadas e o
de Henry Ford se harmonizam
numa infância aparentemente
ingênua, mas talvez muito além
do bem e do mal.
@ - coelhofsp@uol.com.br
Texto Anterior: 19º SPFW: Segundo dia do evento olha para o passado Próximo Texto: Música: Chico Pinheiro mostra seu brilho em segundo disco Índice
|