São Paulo, quarta-feira, 29 de junho de 2005

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MARCELO COELHO

Desenhos ingênuos, sinfonias simplórias

Quando se fala em Walt Disney, o que vem à mente na hora são os personagens arquiconhecidos: Mickey, Donald, Pateta, Tio Patinhas. Mas uma bonita caixa de metal prateado com dois DVDs, à venda nas locadoras, traz uma boa quantidade de desenhos antiqüíssimos, quase pré-históricos, ou "pré-Pato Donald", dos estúdios Disney.
Feitos durante a década de 30, atendem pelo nome de "Silly Symphonies", ou "Sinfonias Ingênuas", como diz a capa em português. Talvez fosse melhor traduzir para "Sinfonias Simplórias".
Na coleção, há alguns clássicos que eu nunca tinha visto, como "Os Três Porquinhos", de 1933, ou a estréia de Donald em "A Galinha Sábia", de 1935.
Algumas poucas cenas ou desenhos sobreviviam, não sei bem como, num inconsciente televisivo de imagens em preto-e-branco. Inscrevem-se na memória de certas tardes de férias com muita chuva, a que assombravam objetos dançantes, telefones fora de moda franzindo as sobrancelhas, banquetas e sofás despertando de seu sono para sapatear sobre o assoalho, luminárias que se curvam em reprimendas e desaparecem de repente.
Também nesse passado de espantos, silêncios e tumultos esconde-se uma ou outra imagem de desenhos animados ainda mais antigos, provavelmente alheios a tudo o que Disney inventaria depois: penso naqueles momentos de sadismo primordial, ainda imitado do teatro do século 19, em que vilões de grandes chapéus pretos retorcem os bigodes depois de amarrar a mocinha nos trilhos do trem ou na esteira rolante de uma serraria, cujo motor, ora lento, ora velocíssimo, tornaria inaudíveis (mas tudo era mudo, acho, nessa época) os gritos de desespero e os apelos lacrimosos da vítima.
Mas esse mundo sinistro é anterior, como eu disse, às "Sinfonias Ingênuas", que são na maior parte em technicolor e já mostram o apuro de vista, a flexibilidade de movimentos e a graça de invenção dos grandes longas-metragens da Disney, como "Branca de Neve" (1937) e "Pinóquio" (1940).
Só um desenho destes agora reunidos em DVD guarda para mim um pouco daquelas lembranças desconfortáveis dos programas de TV vistos na infância. Trata-se de "O Mundo da Música", uma historinha em que um rei e um príncipe em forma de saxofone terminam casando com uma rainha e uma princesa em forma de violoncelo depois de uma batalha tremenda entre a "Terra da Sinfonia" e a "Ilha do Jazz". Havia algo de desajeitado, de "difícil" e, se posso empregar o termo, de "desinfantil" naquela situação.
O máximo de fluência, musicalidade e despropósito, entretanto, pode ser visto em desenhos como "A Arca de Noé" ou "Coelhinhos Engraçadinhos". Neste último, registra-se o que seria uma grande fábrica de ovos de Páscoa ao ar livre, mobilizando uma equipe eficientíssima de coelhos que não param de seguir a música enquanto cumprem suas tarefas: derreter barras de chocolate, rechear, embrulhar, transportar ovos sem fim.
Também um quadro de hiperatividade suavíssima, sem dor nem acidentes que não sejam cômicos, é o que se representa em "A Arca de Noé". A construção do barco é coordenada por um Noé engenheiro, com um rolo de plantas de pergaminho em punho; seus três filhos, com as vestes bíblicas cobertas de remendos, organizam o trabalho geral da bicharada. Rinocerontes racham pranchas de madeira, hipopótamos perfuram tábuas com os dentes, macacos tomam conta da tela montando peças do navio, pica-paus martelam o revestimento do casco.
E não há propriamente enredo nesses desenhos. Vemos simplesmente a construção da arca, as dificuldades pontuais da empreitada de salvação: um elefante que não cabe na cabine, um burrico que se recusa a embarcar, os gambás com quem os bichos não querem conviver. Depois, o óbvio: 40 dias de chuva, o sol voltando, o desembarque. No desenho dos coelhinhos, nem isso: apenas as variedades de uma mesma atividade produtiva e nada mais.
Talvez o segredo desses desenhos seja o fato de retratarem, numa época de depressão econômica, a atividade industrial como um empreendimento feliz, coordenado, coletivo, utópico. Ao mesmo tempo, tudo parece natural: como se a Natureza, ela própria, dispusesse de um cérebro de engenheiro, capaz de construir as mais fantasiosas e eficientes máquinas a partir de pássaros, abelhas, lírios e margaridas.
Em várias dessas "Sinfonias Ingênuas" -mas não em todas-, chama a atenção a ausência de moralidade, de pedagogia. Atualmente, as histórias infantis parecem ter sempre necessidade de um vilão: no "Aladim", da própria Disney, o feiticeiro malvado Jafar é o eixo incansável da história. O sítio do Pica-Pau Amarelo, nos livros de Monteiro Lobato, nunca viveu sob o constante assédio da Cuca, como acontece na minissérie de TV.
Obviamente, não é de hoje que o Lobo Mau persegue os Três Porquinhos ou que a Bruxa tenta matar Branca de Neve. Mas um divertimento sem vilões, pura dança de folhas, galinhas ou biscoitos (penso em "The Cookie Carnival"), faz muito bem de vez em quando. Vemos, nesses desenhos mais antigos, a pura reação instintual de cachorros, patos e pingüins desenvolver-se numa mecânica perfeita, científica, de brinquedo de corda. A luta pela vida se firma ao lado da civilização técnica. As adaptações infinitas da forma orgânica e a prevalência esfuziante das leis de causa e efeito, o mundo de Darwin e o de Newton, o mundo das fadas e o de Henry Ford se harmonizam numa infância aparentemente ingênua, mas talvez muito além do bem e do mal.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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