São Paulo, sábado, 29 de julho de 2000


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CRÍTICA
Autor mira revólver para olimpo estampado nas revistas

TOM ZÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sou contra este livro. Discordo completamente do que ele diz.
Aproveito para colocar-me também contra a receita de Ezra Pound, que manda que se comente o poema, não o poeta, e digo que Pedro Alexandre Sanches, o autor, tem crédito para escrevê-lo. Conseguiu-o ouvindo artistas das fímbrias do mercado, estranhos às grandes confrarias e eventualmente apostando em carreiras ainda não consagradas. Sincero, faço votos de que minha discordância aumente a discussão e o número de seus leitores.
"Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba", título muito bem-achado, de ressaibo concretista, aborda o problema da música popular brasileira de forma como eu, por exemplo, nunca faria nem teria coragem de fazer. Apresenta cruamente um "decifra-me, ou te devoro": não sob a forma de enigma literário ou engenhoso, mas com um revólver na cabeça.
Espera-se que um crítico cobre criação e produção. O autor o faz, com frequência. É justo que um crítico tenha a expectativa de acontecimentos significativos dos quais possa participar intelectualmente, para começo de conversa.
Quando PAS chegou à idade adulta, viveu o fracasso do período, do ponto de vista de sua demanda por criatividade. Foi traído pelo capricho de uma longa estiagem de criação. Em sua época de estudante, aos 25, viu-se perdido: ou por não querer introduzir-se na panela dos heróis vigentes, ou por não lhe oferecer um bonde no qual embarcar com seu desejo. Foi um Tennessee Williams sem doce pássaro e sem juventude. Tudo que se fale sobre o livro tem de levar em conta a idade do autor e o momento da escrita.
É justo que um crítico cobre riqueza criativa, que não permita ao artista tornar-se uma franquia de si mesmo. Mas não concordo com sua condenação a Caetano, ou à forma como este conviveu com "A Morte do Caixeiro-Viajante. Amenizando a metáfora: de "um" caixeiro-viajante. Sempre nascemos ao lado ou na correnteza de um repertório de modelos "eternos-e-prontos-para-morrer". Morria o samba, ou melhor, um de seus estilos. Morte dolorosa. A maioria, nos anos 60 e 70, tentou reagir, recolheu-se em mágoas, esperneou. Caetano aceitou e o registrou em versos e atitudes.
Lembro-me de Rogério Duprat, na época: "Veja o samba: é uma forma rica e complexa, mas agora não só parece uma bobagem como anda chato pra burro". E lá ia o indigitado, exaurindo-se em repetição formal. O tropicalismo de Gil e Caetano foi o urubu dessa carniça. O livro condena uma medida de saúde pública. Insisto: o enterro do samba o fortalece. Provam-no os últimos e belos compostos por Caetano, tentativas como "Estudando o Samba" etc.
Voltando ao estilo "revólver-na-cabeça": o autor não é o primeiro excluído a traduzir desesperança e carência em bala. Essa dor de olhar ao intangível remete-me a Contardo Calligaris, narrando no Mais! uma cena vista no aeroporto de Milão: pessoas pobres sentadas na grama, comendo sanduíches e contemplando os aviões que nunca as acolheriam na barriga metálica. Já no Brasil, depois de Noel, da bossa nova, do tropicalismo, somos todos farofeiros. Em nossa Milão, os "aviões da arte eleita", além de aturdir os excluídos com ruído, privam-nos da palavra como vida. Ave, Lacan.
Parece que me aproximo de um dos temas do livro: o direito à existência. Desenhemos um paralelo: o Olimpo grego, deuses em banquete. E ao comum dos homens, que os inventou, cabem farofa e contemplação bajuladora? Aqui concordo com o autor. Entre nós, brasileiros, a intermediação de revistas confirma o estado de coisas e mantém a intangibilidade dos eleitos. Tal olimpo massacra via "Caras", caríssimo castigo. Identifico-me com esse modo de ver a vida como discurso, como direito à voz participativa.
A recorrência a categorizações lukacsianas ao narrar e descrever empurra e emperra a análise. Há muito que a literatura se afastou da narrativa; bons narradores são muito raros. Não há por que cobrar à música popular a função de libretista do epos e o papel de consciência estética. Sobre ela recairiam o dom, a responsabilidade, a técnica, o saber-fazer. Será que você não está nos pedindo muito, não, Pedro Alexandre?
Deixando categorias críticas pra lá, é quando o autor exerce a emocionalidade que o livro é bom. Arrisca-se a errar, não se filia a consagrações cristalizadas, ousa levantar cortina sobre o que o tempo pode mostrar como equívoco total ou acerto premonitório.
Por traquejo profissional, PAS sabe que essa história de "considerandos" não vende idéias. Então cospe fogo (ou quase) em Chico Buarque, Jorge Ben Jor, Paulinho da Viola. E lá vai, haja bala.


Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba     Autor: Pedro Alexandre Sanches Editora: Boitempo Quanto: a definir (340 págs.)



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