São Paulo, sábado, 29 de julho de 2000


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Tio Dave era pleno de boas histórias

LUIZ CAVERSAN
DA REPORTAGEM LOCAL

David Drew Zingg tinha muita sorte. Foi o homem certo, para a profissão certa, que encontrou os personagens certos, nas épocas e nos locais certos.
Tio Dave (como ele mesmo se autodenominava em seus artigos publicados na Folha entre 1987 e o início deste ano) viveu muito bem seus 76 anos. É o mínimo que se pode dizer ao relembrar encontros em que ele destilava humor, inteligência, sagacidade e alguns exageros.
Zingg era um homem de muitas histórias. A primeira, e provavelmente verdadeira, foi seu nascimento em Montclair, Nova Jersey, EUA, em 14 de dezembro de 1923. A seguir vieram outras: passeios de bonde até Nova York, emprego de office-boy na NBC, cursos na Universidade Columbia. Dessa época, suas histórias saltam para a Segunda Guerra Mundial, na qual combateu como voluntário na Força Aérea Americana e se tornou correspondente de guerra.
De volta a Nova York, atuou como editor, redator e repórter das revistas "Look" e "Life". Em meados dos anos 50 se tornou fotógrafo-repórter free-lancer, o que foi até morrer.
Exibiu seu talento em "Look", "Life", "Esquire", "Sports Illustrated", "Vogue", "The New York Times" e "The Observer", entre outras publicações.
Acompanhou de perto a vida de inúmeras celebridades, como John Kennedy (cobriu, naquela mania de estar no lugar certo com a pessoa certa, a campanha do futuro presidente e descobriu muitos de seus segredos inconfessáveis), Winston Churchill, Che Guevara, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald e outras, diversas das quais ficaram suas amigas.
Essa seria uma de suas características por toda a vida: estabelecer mais que relações meramente profissionais com as pessoas e lugares com os quais se envolvia jornalisticamente. Contava que, de brincadeira, Grace Kelly o empurrou, vestido, numa piscina e que namorou uma moça de 18 anos chamada Oona que, em 1942, o apresentou a um senhor que "poderia ser seu avô", dizendo: "David, este é meu futuro marido, Charles Chaplin".
Zingg chegou ao Brasil, pela primeira vez, em 1959, cobrindo a regata oceânica Buenos Aires-Rio. Logo criou uma ponte aérea NY-Rio e, mais uma vez, foi ao lugar certo, na hora certa.
Era 1962 e na boate Bon Gourmet estreava o show que reunia uma turma de músicos e um poeta-diplomata. Nada menos que João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Foi o primeiro show de bossa nova da história e Tio Dave estava lá.
Estava lá e ficou, como disse, "enfeitiçado, hipnotizado, profundamente transformado".
Tanto que, sob o efeito de vários martinis do bar P.J.Clark's, de NY, teve uma idéia para promover a reportagem que fizera sobre a nova música brasileira: "É só alugar o Carnegie Hall e uma frota de aviões e chamar a tropa da bossa nova para um show aqui".
As coisas aconteceram mais ou menos assim e a bossa nova ganhou o mundo.
E o Brasil ganhou Zingg, que voltou em 1964, passando a fazer parte das turmas de Ipanema, da bossa nova, do cinema novo e da agitação que rolava no Rio.
Foram anos de retratos encantadores de Pixinguinha, Tom Jobim, João Gilberto, Pelé, Leila Diniz, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e de personagens anônimos.
Zingg se mudou para São Paulo em 1978, integrando-se rapidamente. Descobriu até pendores para o canto, integrando a banda pseudo-punk Joelho de Porco.
Passou a escrever periodicamente na Folha e também atuou como consultor da editoria de Fotografia do jornal.
Ensinava, em reuniões divertidíssimas, nas quais não abandonava o chapéu de aba caída e a gravata-borboleta, a arte do retrato ("Zingg, reputo, é um mestre do retrato", escreveu o crítico Pietro Maria Bardi), contribuindo para que o jornal desse um salto qualitativo nessa área.
Em 1990, tornou-se colunista fixo do jornal, primeiro na llustrada, depois em Turismo, onde compartilhava com o leitor experiências de uma vida peculiar.
Seu último artigo na Folha foi publicado em 28 de fevereiro deste ano e tinha como epígrafe a frase do escritor Oliver Goldsmith (1730-1774): "Nada supera a vaidade de nossa existência, exceto a frivolidade de nossas ocupações".


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