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Crônica paulistana
Como explicar o sucesso da soma de "Maria do Bairro" com Kenny G?
GUSTAVO PIQUEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O que você acha de uma
canção cujo refrão é "O
som de um saxofone a
soluçar/Pedindo assim para
te abraçar", interpretada
num dueto homem/mulher
estilo Jane & Herondy (ou
Luan & Vanessa, dependendo
de sua idade)?
Não gostou? Comecei mal?
Sem problemas, mudo de assunto. Vamos à história de uma
paixão proibida. Ele é rico; ela,
pobre. São separados pelo destino, cruel destino. Mas ela carrega no ventre um fruto desse
amor e lutará, contra tudo e
todos, para reencontrar o pai
de seu filho.
Legal? Não? Ah, tá, você não
consome esse tipo de dramalhão. Na sua casa, novela mexicana não entra. Entendi.
Deixe-me ver... Solo de sax à
la Kenny G. Curte? Ah, é brega... E piadinhas de sexo? Também não? Que droga, não acerto uma... Mas, pelas suas respostas, posso concluir que assistir à soma desses parágrafos,
durante três horas consecutivas, deva ser o seu pior pesadelo, certo?
Certo? Nada. Errei de novo.
Pelo menos é o que me informa
a platéia que lota o teatro Abril
todas as noites e aplaude, entusiasmadíssima, o musical "Miss
Saigon", após desembolsar de
R$ 65 a 200 pelo ingresso.
A superprodução, em cartaz
desde o dia 12, já foi "vista por
mais de 33 milhões de pessoas
em 25 países", como divulga
seu release e nossos meios de
comunicação repetem.
Mas é estranho. Se o resultado da soma de Jane&Herondy
com "Maria do Bairro", Kenny
G e Ary Toledo soa catastrófico,
como explicar o sucesso da
atual temporada paulistana?
Serão os "US$ 12 milhões de
investimento"? Ou os "36 pares
de calçados feitos sob medida"?
Também acho que não. Fosse
assim, o balanço anual do banco Itaú -com números muito
mais impressionantes do que
esses, tenho certeza- deveria
ser item dos mais disputados.
Além de receber extensa cobertura de nossos cadernos culturais, é claro.
A explicação deve estar em
outro lugar. Tentarei minhas
recordações de infância. Lembro-me de um moletom preto
com a palavra "Cats" grafada
em laranja manuscrito. A cada
volta às aulas, cinco ou seis colegas estreavam o seu. Os anos
passavam, mas o moletom
"Cats" seguia inabalável como
hit da estação. Eu não fazia a
menor idéia do que significava
e, em silêncio, morria de inveja
dos que tinham o seu. Já adulto,
finalmente descobri que "Cats"
era o nome de um dos mais famosos musicais da Broadway.
Descobri também que, ao incluir o souvenir na bagagem, os
pais não buscavam completar o
guarda-roupa de Júnior nem
alardear fanatismo pelo espetáculo. Não. Sua real função era a
de comunicar aos pobres conterrâneos que o casal passara
férias em Londres ou Nova
York e, sofisticadíssimos, assistiram a musicais. Uma espécie
de placa "freqüento a
Broadway, mordam-se de inveja", versão fina.
Nada bobos, os produtores
dos espetáculos perceberam o
rentável filão -a mesquinhez
humana, não a música ou o teatro- e soltaram suas franquias
pelo mundo. Ampliaram, desse
modo, seu público para além
das classes mais abastadas.
Agora, basta um pulinho à Bela
Vista para adquirir nosso símbolo de status ou assunto para a
próxima festa.
Quando questionado sobre o
motivo do sucesso dos musicais
em São Paulo, o diretor importado para a montagem de "Miss
Saigon", Fred Hanson, saiu-se
com a brilhante "São Paulo é
uma das cidades mais ricas do
mundo". E a gente nem repara
na estupidez da frase, não é
mesmo? Finge até que é verdade. Que orgulho! Temos espetáculos "iguais à Broadway".
Tão chique.
E, com isso, fica fácil perceber porque todos os comentários -venham do público, venham da mídia- se atêm a números ou aspectos técnicos.
Ora, dane-se se a música ruim,
o enredo chavão. Isso não importa. Ir a um musical nada tem
a ver com a qualidade do espetáculo em si. Duvida? Então
confira as taças de champanhe
que circulam pelo intervalo.
Ou o título de uma das reportagens publicadas sobre "Miss
Saigon": "São Paulo, Nova York
e Londres têm algo em comum:
musicais".
Que orgulho!
GUSTAVO PIQUEIRA é designer e autor do "Manual Prático do Paulistano Moderno e Descolado" (ed. Martins Fontes)
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