São Paulo, domingo, 29 de julho de 2007

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Crônica paulistana

Como explicar o sucesso da soma de "Maria do Bairro" com Kenny G?

GUSTAVO PIQUEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que você acha de uma canção cujo refrão é "O som de um saxofone a soluçar/Pedindo assim para te abraçar", interpretada num dueto homem/mulher estilo Jane & Herondy (ou Luan & Vanessa, dependendo de sua idade)? Não gostou? Comecei mal?
Sem problemas, mudo de assunto. Vamos à história de uma paixão proibida. Ele é rico; ela, pobre. São separados pelo destino, cruel destino. Mas ela carrega no ventre um fruto desse amor e lutará, contra tudo e todos, para reencontrar o pai de seu filho.
Legal? Não? Ah, tá, você não consome esse tipo de dramalhão. Na sua casa, novela mexicana não entra. Entendi.
Deixe-me ver... Solo de sax à la Kenny G. Curte? Ah, é brega... E piadinhas de sexo? Também não? Que droga, não acerto uma... Mas, pelas suas respostas, posso concluir que assistir à soma desses parágrafos, durante três horas consecutivas, deva ser o seu pior pesadelo, certo? Certo? Nada. Errei de novo.
Pelo menos é o que me informa a platéia que lota o teatro Abril todas as noites e aplaude, entusiasmadíssima, o musical "Miss Saigon", após desembolsar de R$ 65 a 200 pelo ingresso.
A superprodução, em cartaz desde o dia 12, já foi "vista por mais de 33 milhões de pessoas em 25 países", como divulga seu release e nossos meios de comunicação repetem.
Mas é estranho. Se o resultado da soma de Jane&Herondy com "Maria do Bairro", Kenny G e Ary Toledo soa catastrófico, como explicar o sucesso da atual temporada paulistana?
Serão os "US$ 12 milhões de investimento"? Ou os "36 pares de calçados feitos sob medida"?
Também acho que não. Fosse assim, o balanço anual do banco Itaú -com números muito mais impressionantes do que esses, tenho certeza- deveria ser item dos mais disputados. Além de receber extensa cobertura de nossos cadernos culturais, é claro.
A explicação deve estar em outro lugar. Tentarei minhas recordações de infância. Lembro-me de um moletom preto com a palavra "Cats" grafada em laranja manuscrito. A cada volta às aulas, cinco ou seis colegas estreavam o seu. Os anos passavam, mas o moletom "Cats" seguia inabalável como hit da estação. Eu não fazia a menor idéia do que significava e, em silêncio, morria de inveja dos que tinham o seu. Já adulto, finalmente descobri que "Cats" era o nome de um dos mais famosos musicais da Broadway.
Descobri também que, ao incluir o souvenir na bagagem, os pais não buscavam completar o guarda-roupa de Júnior nem alardear fanatismo pelo espetáculo. Não. Sua real função era a de comunicar aos pobres conterrâneos que o casal passara férias em Londres ou Nova York e, sofisticadíssimos, assistiram a musicais. Uma espécie de placa "freqüento a Broadway, mordam-se de inveja", versão fina.
Nada bobos, os produtores dos espetáculos perceberam o rentável filão -a mesquinhez humana, não a música ou o teatro- e soltaram suas franquias pelo mundo. Ampliaram, desse modo, seu público para além das classes mais abastadas.
Agora, basta um pulinho à Bela Vista para adquirir nosso símbolo de status ou assunto para a próxima festa.
Quando questionado sobre o motivo do sucesso dos musicais em São Paulo, o diretor importado para a montagem de "Miss Saigon", Fred Hanson, saiu-se com a brilhante "São Paulo é uma das cidades mais ricas do mundo". E a gente nem repara na estupidez da frase, não é mesmo? Finge até que é verdade. Que orgulho! Temos espetáculos "iguais à Broadway". Tão chique.
E, com isso, fica fácil perceber porque todos os comentários -venham do público, venham da mídia- se atêm a números ou aspectos técnicos.
Ora, dane-se se a música ruim, o enredo chavão. Isso não importa. Ir a um musical nada tem a ver com a qualidade do espetáculo em si. Duvida? Então confira as taças de champanhe que circulam pelo intervalo.
Ou o título de uma das reportagens publicadas sobre "Miss Saigon": "São Paulo, Nova York e Londres têm algo em comum: musicais".
Que orgulho!


GUSTAVO PIQUEIRA é designer e autor do "Manual Prático do Paulistano Moderno e Descolado" (ed. Martins Fontes)


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