São Paulo, domingo, 29 de julho de 2007

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Crítica/documentário/"Sympathy for the Devil"

Registro de Godard vê minúcias na criação de canção dos Stones

Encontro, de 1968, do "enfant terrible" da nouvelle vague com banda chega ao país

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Tanto quanto, nos dias que correm, a palavra de ordem é "seja (ou pareça ser) moderno ou pere- ça", nos anos 60, "revolução" reunia todos os atributos de termo mágico, capaz de abrir as portas e mudar o mundo.
Nesse clima de idéia e intenções, nada menos "revolucionário" do que o encontro, em pleno 1968, dos Rolling Stones com Jean-Luc Godard.
Os primeiros vinham fazendo do rock um campo fértil de germinação da rebeldia. O segundo levava a cabo a demolição do conservadorismo cinematográfico no modo de narrar e, naquele momento, funcionava como um dos estandartes estéticos do maio de 68.
O resultado do encontro, o mítico "Sympathy for the Devil", chega agora em DVD ao Brasil, em lançamento bem-cuidado da Magnus Opus, que traz como complemento o documentário "Voices", um registro revelador do modo de trabalho e do pensamento de Godard.
Que os fãs remanescentes dos Stones não esperem, entretanto, descobrir algum segredo do bando de Jagger/Richards.
O que Godard registrou foi o trabalho de formiga da banda em estúdio, a construir minuciosamente a canção "Sympathy for the Devil", por meio de longos e lentos movimentos de câmera.
A esse material, o "enfant terrible" da nouvelle vague cola cenas de situações aparentemente disparatadas: integrantes do movimento negro norte-americano Black Panthers enunciando slogans e movimentando fuzis no cenário de um ferro-velho; Anne Wiazemsky (então mulher de Godard), como Eva Democracia, perambulando num bosque enquanto dá uma entrevista na qual suas únicas respostas são "sim" e "não"; um jovem declamando trechos de "Mein Kampf", de Hitler, numa livraria especializada em pornografia e romances baratos; e Wiazemsky pichando em muros londrinos slogans como "cinemarxismo", "sovietcongue", "maoarte" e "freudemocracia".

Ruptura da ordem
Neste caldo de contracultura, as partes adquirem mais sentido que o todo. Não à toa, a versão de Godard para o filme (com uma montagem diferente da que está sendo lançada neste DVD) intitula-se "One + One", ou seja, cada trecho existe isoladamente.
A função específica do registro dos Stones, contudo, é de contraponto produtivo. Enquanto nela Godard se atém com minúcias ao processo de construção e de ordenação de uma canção, nas outras ele insiste nas qualidades da destruição e da ruptura da ordem. "One + One" também pode ser entendido como o princípio fundador da colagem, procedimento da arte moderna de que Godard se apropriou para liberar o cinema de suas amarras.
Assim, o "significado" perde espaço em proveito da abertura do sentido, provocada pela desconstrução da música dos Stones e sua associação livre com tantos outros signos culturais e políticos da época.
Por fim, "One + One" também anuncia a mutação pela qual a obra de Godard estava prestes a sofrer, quando, logo em seguida à experiência, abandona o cinema de autor para mergulhar no experimentalismo político do coletivo Dziga Vertov.


SYMPATHY FOR THE DEVIL
Direção:
Jean-Luc Godard
Distribuição: Magnus Opus (R$ 40, em média)
Cotação: ótimo


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