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MARCELO COELHO
Sophia
Por pior que seja a cidade,
sempre é bonito quando ela
aparece de repente, numa curva
da estrada, depois de horas de
viagem. Sinto falta de um fundo
musical apropriado para essas
chegadas a São Paulo: a paisagem
urbana, recortada contra o céu
poluído, requer algum tipo de
grave ênfase -sem dúvida bem
diversa das marchinhas eleitorais
que nestes dias nos perseguem pelo rádio.
Mas não vou falar de eleições
nem de São Paulo. Passo a palavra à poeta portuguesa Sophia de
Mello Breyner Andresen, que escrevia isto em 1977: "Digo: / "Lisboa" / Quando atravesso -vinda
do sul- o rio / E a cidade a que
chego abre-se como se do seu nome nascesse / Abre-se e ergue-se
em sua extensão noturna/ ... /
Com seus meandros de espanto
insônia e lata/ E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro/ ... / Lisboa
oscilando como uma grande barca / Lisboa cruelmente construída
ao longo de sua própria ausência
/ Digo o nome da cidade / -Digo
para ver".
Sophia Breyner Andresen (1919-2004) é considerada uma das
principais poetas portuguesas do
século 20; amiga de Murilo Mendes e de João Cabral, não tem ainda muitos leitores no Brasil. Uma
antologia de seus textos, organizada por Vilma Arêas, acaba de
ser publicada pela Companhia
das Letras.
Cito mais alguns trechos. No
poema "A Escrita", a autora descreve o interior do palácio Mocenigo, em Veneza, onde viveu lorde Byron. Fala da "beleza das
portas quando ninguém passava", do "liso brilhar do chão polido", dos "tetos altos onde se enrolam as sombras". Termina imaginando o próprio poeta: "A camisa
aberta e branca / O branco do papel as aranhas da escrita/ E a luz
da vela -como em certos quadros- / Tornando tudo atento".
Esse mesmo efeito súbito, de
aparição fantasmagórica -Lisboa e Byron emergindo da escuridão-, pode ser encontrado em
outros poemas. A autora conta,
em "Cesário Verde", como "a luzidia noite assombrou os olhos dilatados" do poeta. Um texto curto
faz menção a viajantes que "se
perderam no repentino azul dos
temporais". Numa paisagem, observa em outro poema, "passavam pelo ar aves repentinas".
Todas essas imagens -o rebrilhar de Lisboa, a luz da vela tornando tudo mais atento, as aves
repentinas- evocam uma sensação difícil de definir. Aparecendo
num clarão instantâneo, surgindo num momento especial, as coisas visíveis parecem emitir uma
radiação que é não apenas luminosa mas também sonora; em vez
de simplesmente olhar, é como se
a poeta "escutasse" aquilo que se
apresenta ao seu raio de visão.
A autora conta, aliás, que mesmo antes de saber ler, conhecia
vários poemas de cor. "Encontrei
a poesia antes de saber que havia
literatura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento do natural,
que estavam suspensos, imanentes. E que bastaria estar muito
quieta, calada e atenta para ouvi-los. Desse encontro inicial, ficou
em mim a noção de que fazer versos é estar atento e de que o poeta
é um escutador."
É assim que, ao lado daqueles
momentos de "assombração" que
víamos/ouvíamos acima, os poemas de Sophia Breyner Andresen
tratam longamente do silêncio.
"Sei que canto à beira de um silêncio", diz ela. Em outro poema,
agradece o "dia de hoje", em que
"o fantasma das maravilhas raras / visita, uma por uma, as tuas
horas / Em que há por vezes súbitas demoras / Plenas como as
pausas de um verso." Em "Jardim", o estado de espírito é diferente, mas a sensação é análoga:
"Alguém diz: / "Aqui antigamente
houve roseiras" / Então as horas /
Afastam-se estrangeiras, / Como
se o tempo fosse feito de demoras".
O jogo se faz, sem dúvida, entre
pólos bem marcados: ausência e
plenitude, luto e celebração. A
vontade de louvar o existente, de
dar graças ao mundo, é sempre
suspeita na arte moderna; cumpre negá-la de algum modo, adiá-la ou desolar-se diante de sua impossibilidade. No caso de Sophia
Breyner Andresen, vários poemas
parecem confiar numa espécie de
recuo, de silêncio, de recolhimento da autora, para que só assim o
mundo possa surgir num transitório e brusco movimento de afirmação.
Sem dúvida, há algo de bem feminino nessa expectativa: alguns
versos falam, por exemplo, de
uma "flor de pânico e sossego"
que aparece "nos grandes pátios
da noite". Mas a mesma atitude
aparece num registro político: a
autora sempre combateu a ditadura salazarista em Portugal e foi
capaz de escrever, em 1972, um
poema ainda hoje convincente
sobre Che Guevara. Ela critica o
pôster do guerrilheiro, "pairando
na sociedade de consumo" de forma puramente ritual, e também o
"primarismo daqueles que confundem revolução com desforra".
"Porém", continua, "em frente do
teu rosto / Medita o adolescente à
noite no seu quarto / Quando procura emergir de um mundo que
apodrece".
Curioso intimismo de esquerda,
em que a busca do despojamento
poético, da forma pura e clara, no
estilo de João Cabral, se mistura
com uma sensibilidade quase
mística, atenta aos rumores do
vento e aos presságios da noite, no
estilo de Cecília Meireles.
Num discurso pronunciado em
1964, Sophia Breyner Andresen
dá conta dessa dupla face de sua
poesia, entre a crítica e a celebração. Afirma que a busca da justiça social é uma "coordenada fundamental de toda a obra poética", já que "a justiça se confunde
com aquele equilíbrio das coisas,
com aquela ordem do mundo onde o poeta quer integrar seu canto".
Falar em "ordem do mundo"
soa um tanto clássico e estetizante; a idéia talvez responda pelo
que existe de mais bonito, mas
também de menos vital, nos poemas da autora. Seus fantasmas,
suas sombras e rápidos vislumbres permanecem, entretanto, espantosamente inquietos nos melhores poemas deste livro.
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