São Paulo, Sexta-feira, 29 de Outubro de 1999
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CINEMA O PRIMEIRO DIA
Equipe de filmagens vive violência no morro

Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
A casa de Diva Maria Carlos, no Chapéu Mangueira; ela emprestou objetos pessoais para a produção dos cenários de "O Primeiro Dia"


FERNANDA DA ESCÓSSIA
da Sucursal do Rio

Morro do Chapéu Mangueira, zona sul do Rio. Um policial civil revista um rapaz, mulato claro, 22 anos. A mãe do rapaz chega e protesta. O policial se irrita. Dá sete tiros no rapaz, outro na mãe. O rapaz morre. A mulher leva um tiro na perna direita, cai no chão e grita pelo filho.
Poderia ser uma cena de "O Primeiro Dia", novo filme de Daniela Thomas e Walter Salles, que estréia hoje e toma o morro como cenário para uma história de vida e morte na virada de 1999 para 2000.
Não é. A história aconteceu no dia 22 de outubro de 1990 e, como outras do Chapéu Mangueira, cruzou a vida da equipe de "O Primeiro Dia".
Josimar Ludovice Santos, 25, figurante do filme nas cenas de praia e feirante, é irmão do rapaz morto, Agnaldo, fuzileiro naval. Há um mês, durante a filmagem de entrevistas sobre "O Primeiro Dia", ele descia o morro carregando equipamentos, quando um PM chegou e quis prendê-lo.
A equipe interveio. "O PM disse para a gente: "Isso é sangue ruim, hem?" Foi um susto. A gente fala da violência, mas não imagina que ela está tão perto", conta Daniela Thomas.
Josimar explica: "Não gosto de polícia mesmo. Um policial matou meu irmão e deixou minha mãe sem andar". Desde então, segundo ele, sua vida parou. "O que eu quero no ano que vem é um emprego", diz.
A mãe de Josimar, Maria Helena Ludovice Santos, 50, até hoje anda de muletas por causa do tiro. Ela entrou na Justiça contra o Estado pedindo uma indenização, mas ainda não conseguiu. Do ano 2000, espera uma vitória na Justiça, para, com o dinheiro, fazer uma nova operação na perna -a quinta.
"Já que eu não posso ter o meu filho de volta. Espero a virada do ano para ter uma vida melhor", diz Maria Helena.
Além do filho morto pelo policial, Helena tem dois outros mortos por envolvimento com o tráfico de drogas.
Cida Alves, 40, líder comunitária, ex-gari, atriz de um grupo de teatro do morro, também fez uma ponta no filme (na cena do bar) e ainda colaborou com algumas expressões do personagem de Matheus Nachtergaele, o malandro Francisco.
Daniela Thomas conta que Cida pegava os roteiros e riscava, sem cerimônia, expressões que considerava fora do vocabulário do morro, sugerindo outras.
São dela, ou do Chapéu Mangueira, expressões como "abalou o vermelhão", que Francisco usa quando se emociona ao reencontrar o amigo João (Luís Carlos Vasconcelos).
"Eu tava achando aquelas falas meio borocoxôs, aí dei umas idéias. Ficou espertinho", diz Cida.
Ela e outros moradores do morro conversaram com "os meninos" (o pessoal do tráfico) e pediram que não atrapalhassem as filmagens.
"Dissemos que seria bom para a comunidade, e eles entenderam", conta Cida.
Para ela, o morro da vida é melhor que o do filme, "porque ele é o real".
Para a virada do ano, planeja uma queima de fogos no Chapéu Mangueira.
Resume suas expectativas repetindo uma expressão que ela, agora, aprendeu com os personagens do filme.
"O nove vai virar zero, o outro nove vai virar zero, o outro nove vai virar zero, o um vai virar dois. Vai zerar tudo, vai começar tudo. Espero que seja bom."


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