São Paulo, Sexta-feira, 29 de Outubro de 1999
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Clara Crocodilo voltou


Arrigo Barnabé regrava e relança álbum de 1980 e tenta explicar sua obsessão por ele


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Está consumado. Arrigo Barnabé, 48, coroa de hoje a domingo, ao vivo, a satisfação de obsessão que carregou por quase 20 anos: regravar e relançar "Clara Crocodilo", disco/suíte que arquitetou em 1972, em Londrina (PR), ainda estudante de arquitetura, e que o inseriu no mapa musical em 80, quando pôde lançá-lo, então estudante de música, em São Paulo.
Retrabalhando detalhes do disco original, aproveita para retificar uma imprecisão disseminada após duas décadas do advento do que foi habitualmente apelidado vanguarda paulistana e, ocasionalmente, lira paulistana -nome, de fato, do teatro que congregou vários dos artistas da leva.
" "Clara Crocodilo" nunca foi apresentado no Lira Paulistana. Nunca tivemos ligação nenhuma com o selo Lira Paulistana. O LP foi produzido e distribuído de forma independente por Robinson Borba", avisa o encarte.
Arrigo explica a zanga: "Quis deixar claro, porque se fala sempre no Lira Paulistana, mas nunca do Robinson, que era da turma, compunha, me mostrou Jimi Hendrix e foi quem viabilizou meu disco, apostando que tínhamos um pensamento original".
Músico sempre plantado na fronteira entre popular e erudito, ele disseca as influências do agrupamento primariamente reunido em Londrina (com Itamar Assumpção, Mário Lúcio Cortes e seu irmão Paulo Barnabé, entre outros) e depois ampliado como vanguarda paulistana (Rumo, Premê, outros tantos).
"O "Sgt. Pepper" (67), dos Beatles, nos impressionou muito, depois também a tropicália, que veio disso. A gente curtia bailinho, iê-iê-iê, mas havia aquelas discussões, "isso realmente não é arte". Eu estudava em conservatório, gostava de Bach".
Arrigo justifica a regravação na íntegra do LP que o lançou (viabilizado pelo êxito de "Sabor de Veneno" no festival universitário da TV Cultura de 79), hábito incomum ao menos no terreno do pop:
"É um disco de caráter sinfônico, um trabalho de música escrita. É comum gravar várias vezes uma peça sinfônica. Não fiquei satisfeito com algumas coisas do original, que eram mal resolvidas. Não gostava das minhas intervenções vocais, eu falava muito. Tentava fazer ligações com a MPB, citações a Orestes Barbosa, Paulinho da Viola. Meu irmão dizia que não tinha nada de MPB".
Fato é que Arrigo acabou se beneficiando da adoção pela MPB, via Caetano Veloso, que o celebrou com constância de 82 a 84.
"Fiz um programa de TV com ele uma vez e mencionei que a tropicália tinha seguido caminhos inesperados, que o natural era que eles tivessem ido para lados mais parecidos com os nossos. Reclamei que suas músicas tinham ficado cheia de nomes, de Dadi, Mu... Ele riu e disse que ia colocar meu nome numa. Colocou em "É hoje" e "Língua" ".
"Não sei se me beneficiei disso. Meu nome ficou mais falado, só. Acho que ele queria mostrar simpatia por meu trabalho, só. Itamar Assumpção é o mais importante autor de canção, e Caetano e Gil, que são ligados à canção, nunca o mencionaram. Acho estranho."
Retoma, falando de sua relação com a canção: " "Clara Crocodilo" talvez já prenunciasse uma crise da canção. Na indústria você vê, o surgimento do rap é isso. Acho que a canção não tem muito para onde ir. Não me interesso mais por música popular. De 93 para cá, passei a escutar só música erudita. Você tem que ouvir muitas vezes para entender o que está acontecendo. De certa forma, tenho pouco tempo produtivo pela frente, não posso me dispersar".
Comenta, então, a aproximação pop testada em "Suspeito" (1987). "O principal motivo foi que precisava ganhar dinheiro. Me permitiu sobreviver, pude usar as canções de "Suspeito" para montar show, cantar em bar."
Diz não ter absorvido bem a experiência pop. "Me dava uma sensação de vazio, uma angústia. Fiz oito Chacrinhas, 12 Bolinhas e três "Xuxas" cantando "Uga-Uga'! Era duro, meu Deus do céu. Diziam que eu era rebelde, resolvi seguir tudo à risca, pagaram jabá para tocar no rádio. Foi o disco que menos vendeu."
Depois de "Suspeito" e do despercebido "Façanhas" (92), o músico enfrentou sua própria crise de texto. "Em 91, ganhei uma bolsa para fazer uma ópera sobre "Macbeth". Não conseguia escrever o libreto. Comecei a ver que meu problema era não conseguir solucionar roteiros."
A busca de parceria foi um caminho -começou a trabalhar com o argentino Alberto Muñoz, num projeto inconcluso (que há pouco ele voltou a submeter, com outro projeto, de "ópera em quadrinhos", ao Sesc Ipiranga, o mesmo que sediou a refeitura de "Clara" e que reestréia o show hoje.
"Desde 94 desenvolvemos idéias para fazer "O Homem dos Crocodilos", uma ópera inspirada numa história de neurose infantil de Freud. Em nosso roteiro o compositor não consegue pôr a mão no piano com medo de que a tampa feche sobre seus dedos."
Referência autobiográfica? "É, de certa forma. O compositor sonha com o crocodilo quando vê a capa do "Clara Crocodilo"." Será mera coincidência que, emperrado tal projeto, ele volte a "Clara Crocodilo", o autor em crise girando em torno do mesmo tema?
"Não, refazê-lo era uma obsessão minha desde 82. Era heróico, juvenil, eu não havia assimilado o que eu havia feito. Agora pude depurar imagem e música, aqui há coisas que considero definitivas."
Não todas as coisas? "Tenho falhas na minha formação musical, nem tudo é perfeito. Até fico pensando, mas estou feliz, não sinto agora necessidade de refazer."
Reestruturação à parte, como é de praxe no Brasil, Arrigo não consegue relançar em CD seus quatro primeiros discos -inclusive o "Clara Crocodilo" original (lançado independente e comprado pela Ariola), que queria recuperar para efeito de comparação.
"Os direitos dos três primeiros são da PolyGram, que agora se fundiu com a Universal. Me disseram que ainda estão em auditoria interna, que têm de terminar o processo de fusão", resigna-se.


Show: Clara Crocodilo Artista: Arrigo Barnabé Onde: Sesc Ipiranga (r. Bom Pastor, 822, tel. 0/xx/11/3340-2000) Quando: hoje e amanhã, às 21h, e domingo, às 20h Quanto: R$ 10

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