São Paulo, terça-feira, 29 de outubro de 2002

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MÚSICA

Racionais MCs encena a si mesmo para DVD

ISRAEL DO VALE
EDITOR-ADJUNTO DA ILUSTRADA

O Racionais MCs foi submetido no último final de semana ao que talvez tenha sido sua mais dura provação desde o reconhecimento artístico e de mercado -conjunção tão difícil de obter como de preservar.
O show de lançamento do novo CD, "Nada como um Dia Após o Outro Dia", três meses e 200 mil discos vendidos depois de sua chegada às lojas, sinaliza a um só tempo a reafirmação e um esgarçamento de princípios, aspecto tão caro na trajetória do grupo.
Conhecido pela defesa intransigente de sua integridade artística, cujo ponto mais visível (e nada irrelevante, no atual contexto) é a condição arredia em relação à mídia, o grupo de Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay deu sinais de força ao reunir 10 mil pessoas num show com divulgação estruturada basicamente no boca-a-boca. Nada de esmolar entrevistas, nada de pagar anúncios.
Nas quase duas horas do show, iniciado às 3h30 (!) de domingo, o grupo provou do céu e do inferno do porte que atingiu. Engessado pelo aparato montado para a produção do DVD que extrairá dali, o quarteto se viu acuado em seu maior patrimônio, aquele que lhe confere credibilidade diante de seu público: a capacidade de se indignar com naturalidade, de igual para igual.
Amordaçado pelos podes e não-podes da captação de imagens, Brown viu esvair-se o potencial de interlocução com seus pares, com a gente da periferia que o carregou nos ombros até onde chegou. E é nisso que reside a força das músicas (ou melhor, especificamente das letras) do grupo.
Racionais é um caso a ser estudado pelas ciências sociais. Age, pela via artística, numa brecha que o poder público não é capaz de ocupar. Fala para a periferia do mundo -em qualquer censo rasteiro, maioria absoluta- sem abrir mão de inteligência, sem subestimar ninguém. Trata o cotidiano por parábolas da vida bandida, sob influência talvez da proliferação evangélica que floresce nos bolsões de "desfavorecidos".
O jeito é cru, rude até. Daí as acusações frequentes de misoginia, pela truculência verbal com que se referem a "certas" mulheres -e, note-se, só a elas. Daí o costumeiro dedo na cara (equivocado) por uma suposta apologia ao crime que se depreenderia de suas narrativas da bandidagem.
Nem sempre há equilíbrio na ação do grupo. Agindo por vezes no fio da navalha do julgamento moral, Mano Brown, num dos raros momentos de explosão extra-roteiro, parou tudo para engatar um sermão por conta de um grupo de garotos que se esparramava pelo chão, associando isso a um eventual consumo de maconha.
Note-se: passavam das 4h, pelo menos oito horas depois de iniciado o evento -que teve shows de oito outros nomes do rap- e, na suposição de Brown, todos ali deveriam estampar vigor, sem se deixar levar pelo cansaço. Em seu discurso, cobrava o espírito bravio da disposição para a luta, em falta, dizia ele, entre certa juventude. Saiu aplaudido. Era o Mano Brown que seu público esperava, ainda que ao custo do puxão de orelha.
Foi este potencial comunicativo que o show, emoldurado pela perspectiva do DVD, perdeu. Adestrado pelas imposições técnicas (a primeira entrada de moto no palco, por exemplo, foi de um atropelo só), o grupo passou à encenação, como havia prometido KL Jay -mas uma encenação de si mesmo. Outro reparo: Edy Rock amadureceu muito como vocalista, mas o magnetismo de Brown ainda faz diferença.


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