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MARCELO COELHO
Rumo ao abismo
É preciso ser muito otimista para esperar que israelenses e palestinos se entendam sobre
alguma coisa. "Paralelos e Paradoxos", livro recém-lançado pela
Companhia das Letras, cumpre
um belo papel civilizatório nesse
sentido. São quase 200 páginas de
diálogo fraterno entre um intelectual palestino (o crítico literário
Edward Said, morto há pouco
mais de um mês) e um músico judeu (o grande pianista e regente
Daniel Barenboim).
Verdade que eles não falam
muito sobre a questão do Oriente
Médio. Beethoven, Wagner, questões de interpretação musical e literária ocupam a maior parte do
livro. Seria o caso de dizer que,
acima das diferenças políticas e
dos conflitos religiosos, a linguagem universal da música promove o entendimento entre todos os
seres humanos...
Mas há muita ingenuidade numa frase dessas e, ainda que Said
e Barenboim gostassem de acreditar nela, ambos evitam entrar numa espécie de fantasia pedagógico-sinfônica que minimiza as disputas reais de poder.
Em questões espinhosas como a
do Oriente Médio, é comum o recurso a uma fraseologia um tanto
abstrata, do tipo "ah, mas, afinal,
todos querem a paz". Se isso fosse
verdade, não estaria havendo
guerra nenhuma. O que todos
querem não é "a paz", e sim uma
paz determinada, a qual implica,
em graus mais ou menos intensos,
a derrota do adversário; mais
exato dizer que "todos querem o
território" ou que "todos querem
a vitória" do que invocar o conceito sem dúvida enaltecedor,
mas vago, da paz.
Isso não tira a beleza de iniciativas como a que Daniel Barenboim e o violoncelista chinês Yo-Yo Ma protagonizaram em Weimar, no ano de 1999, formando
uma orquestra de jovens músicos
alemães, árabes e judeus. No começo, a desconfiança era total.
Alguns dias se passaram, a troca
de informações musicais se intensificou, e todos terminaram tocando juntos.
Infelizmente, não acredito que
haja muito a concluir de acontecimentos desse tipo. O que torna
possível essa simpática iniciativa
é o mesmo fator que torna chocante, por exemplo, que um assassino nazista toque maravilhosamente peças de Bach e Mozart. É
exatamente por existir uma separação entre o mundo real e a esfera da alta cultura que esta constitui uma crítica aos horrores do
mundo real -e também uma
instância fraca demais para melhorá-lo.
O diálogo entre Barenboim e
Said se torna mais rico e interessante quando ambos se dedicam
a aspectos concretos da prática
musical. Barenboim fala muito
sobre a arte da regência, o que isso implica de risco, de coragem
interpretativa. Ele dá um exemplo:
"Se há em Beethoven um crescendo que vai até o final e de repente um "subito piano" [uma súbita diminuição na intensidade
do som] que cria a ilusão de um
precipício, você tem de fazer isso.
Você tem de ir até o precipício, até
o fim, e não cair, e não largar o
crescendo pela metade". Qual seria, pergunta Said, o estilo do
maestro covarde? Barenboim responde que seria fazer esse crescendo só até certo ponto, "para
não chegar ao precipício, para
manter alguns metros de distância", e só aí, depois de uma breve
interrupção, tocar as notas seguintes bem baixinho; "mas, então, todo o efeito de precipício se
perde".
Esse gosto pelo precipício, pela
vertigem, talvez não seja exclusivamente musical. Nas conversas
com Said, Barenboim dá destaque a duas personalidades notórias pelo anti-semitismo: Richard
Wagner, no século 19, e o maestro
Wilhelm Furtwängler, uma das
maiores figuras musicais da Alemanha hitlerista.
Barenboim chocou muita gente
em Israel, ao apresentar trechos
de óperas de Wagner. Uma sobrevivente dos campos de concentração tomou-o pelo braço: "Eu vi a
minha família sendo levada às
câmaras de gás ao som dessa ópera". Com bastante lucidez e serenidade, Barenboim justifica sua
escolha artística.
Ele se detém longamente, ademais, sobre o estilo de regência de
Furtwängler, que insistia na necessidade de usar um tempo flexível, cheio de flutuações de andamento, na execução das grandes
sinfonias do repertório. O importante para ele, diz Barenboim,
não era apenas exprimir cada trecho individual da partitura, mas
chegar à estrutura formal de cada
obra, feita de transições, de fluxos
e refluxos. Por trás disso está a noção de que, num concerto, o que
conta não é só "a empolgação de
se apresentar em público, não é a
empolgação do aplauso", mas,
sim, "conseguir viver uma determinada peça do começo ao fim
sem interrupção, sem sair dela.
De certo modo, nada na vida se
compara a isso".
É uma visão bastante trágica da
música: a de que, necessariamente, todo som ruma para o silêncio,
e que há algo de irreversível e
mortal em toda apresentação. O
mundo perfeito, equilibrado, estruturado racionalmente de uma
peça clássica, é também fugaz,
instável, acidental.
É tentador associar essas concepções de Barenboim à própria
situação dos judeus liberais em
relação ao Estado de Israel. A
utopia de fundar no deserto uma
sociedade justa e regulada como
uma obra musical certamente já
se desfez. E, se Barenboim parece
tão fascinado pela proximidade
com o abismo, na execução de
uma sinfonia de Beethoven talvez
isso se reflita em sua própria receptividade ao diálogo com o
"inimigo" -que este seja Wagner, Furtwängler ou Said. Não estaria aí, afinal, o segredo de tudo?
Todo diálogo, todo empenho em
chegar à paz pode, sem dúvida,
ser visto como um ato extremo, o
ato de quem está a ponto de atirar-se no nada, como um suicida;
mas só enfrentando tais riscos se
garante a própria salvação. Na
música de Beethoven, pelo menos,
isso dá certo.
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