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São Paulo, quarta-feira, 29 de outubro de 2003

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MARCELO COELHO

Rumo ao abismo

É preciso ser muito otimista para esperar que israelenses e palestinos se entendam sobre alguma coisa. "Paralelos e Paradoxos", livro recém-lançado pela Companhia das Letras, cumpre um belo papel civilizatório nesse sentido. São quase 200 páginas de diálogo fraterno entre um intelectual palestino (o crítico literário Edward Said, morto há pouco mais de um mês) e um músico judeu (o grande pianista e regente Daniel Barenboim).
Verdade que eles não falam muito sobre a questão do Oriente Médio. Beethoven, Wagner, questões de interpretação musical e literária ocupam a maior parte do livro. Seria o caso de dizer que, acima das diferenças políticas e dos conflitos religiosos, a linguagem universal da música promove o entendimento entre todos os seres humanos...
Mas há muita ingenuidade numa frase dessas e, ainda que Said e Barenboim gostassem de acreditar nela, ambos evitam entrar numa espécie de fantasia pedagógico-sinfônica que minimiza as disputas reais de poder.
Em questões espinhosas como a do Oriente Médio, é comum o recurso a uma fraseologia um tanto abstrata, do tipo "ah, mas, afinal, todos querem a paz". Se isso fosse verdade, não estaria havendo guerra nenhuma. O que todos querem não é "a paz", e sim uma paz determinada, a qual implica, em graus mais ou menos intensos, a derrota do adversário; mais exato dizer que "todos querem o território" ou que "todos querem a vitória" do que invocar o conceito sem dúvida enaltecedor, mas vago, da paz.
Isso não tira a beleza de iniciativas como a que Daniel Barenboim e o violoncelista chinês Yo-Yo Ma protagonizaram em Weimar, no ano de 1999, formando uma orquestra de jovens músicos alemães, árabes e judeus. No começo, a desconfiança era total. Alguns dias se passaram, a troca de informações musicais se intensificou, e todos terminaram tocando juntos.
Infelizmente, não acredito que haja muito a concluir de acontecimentos desse tipo. O que torna possível essa simpática iniciativa é o mesmo fator que torna chocante, por exemplo, que um assassino nazista toque maravilhosamente peças de Bach e Mozart. É exatamente por existir uma separação entre o mundo real e a esfera da alta cultura que esta constitui uma crítica aos horrores do mundo real -e também uma instância fraca demais para melhorá-lo.
O diálogo entre Barenboim e Said se torna mais rico e interessante quando ambos se dedicam a aspectos concretos da prática musical. Barenboim fala muito sobre a arte da regência, o que isso implica de risco, de coragem interpretativa. Ele dá um exemplo:
"Se há em Beethoven um crescendo que vai até o final e de repente um "subito piano" [uma súbita diminuição na intensidade do som] que cria a ilusão de um precipício, você tem de fazer isso. Você tem de ir até o precipício, até o fim, e não cair, e não largar o crescendo pela metade". Qual seria, pergunta Said, o estilo do maestro covarde? Barenboim responde que seria fazer esse crescendo só até certo ponto, "para não chegar ao precipício, para manter alguns metros de distância", e só aí, depois de uma breve interrupção, tocar as notas seguintes bem baixinho; "mas, então, todo o efeito de precipício se perde".
Esse gosto pelo precipício, pela vertigem, talvez não seja exclusivamente musical. Nas conversas com Said, Barenboim dá destaque a duas personalidades notórias pelo anti-semitismo: Richard Wagner, no século 19, e o maestro Wilhelm Furtwängler, uma das maiores figuras musicais da Alemanha hitlerista.
Barenboim chocou muita gente em Israel, ao apresentar trechos de óperas de Wagner. Uma sobrevivente dos campos de concentração tomou-o pelo braço: "Eu vi a minha família sendo levada às câmaras de gás ao som dessa ópera". Com bastante lucidez e serenidade, Barenboim justifica sua escolha artística.
Ele se detém longamente, ademais, sobre o estilo de regência de Furtwängler, que insistia na necessidade de usar um tempo flexível, cheio de flutuações de andamento, na execução das grandes sinfonias do repertório. O importante para ele, diz Barenboim, não era apenas exprimir cada trecho individual da partitura, mas chegar à estrutura formal de cada obra, feita de transições, de fluxos e refluxos. Por trás disso está a noção de que, num concerto, o que conta não é só "a empolgação de se apresentar em público, não é a empolgação do aplauso", mas, sim, "conseguir viver uma determinada peça do começo ao fim sem interrupção, sem sair dela. De certo modo, nada na vida se compara a isso".
É uma visão bastante trágica da música: a de que, necessariamente, todo som ruma para o silêncio, e que há algo de irreversível e mortal em toda apresentação. O mundo perfeito, equilibrado, estruturado racionalmente de uma peça clássica, é também fugaz, instável, acidental.
É tentador associar essas concepções de Barenboim à própria situação dos judeus liberais em relação ao Estado de Israel. A utopia de fundar no deserto uma sociedade justa e regulada como uma obra musical certamente já se desfez. E, se Barenboim parece tão fascinado pela proximidade com o abismo, na execução de uma sinfonia de Beethoven talvez isso se reflita em sua própria receptividade ao diálogo com o "inimigo" -que este seja Wagner, Furtwängler ou Said. Não estaria aí, afinal, o segredo de tudo? Todo diálogo, todo empenho em chegar à paz pode, sem dúvida, ser visto como um ato extremo, o ato de quem está a ponto de atirar-se no nada, como um suicida; mas só enfrentando tais riscos se garante a própria salvação. Na música de Beethoven, pelo menos, isso dá certo.

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