São Paulo, sexta-feira, 29 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ERIKA PALOMINO

POR QUE NÃO GOSTEI DE "FASHION PASSION"

Talvez o principal motivo de eu não ter gostado da mostra "Fashion Passion", a exposição que pretende contar cem anos de moda na Oca, anunciada como a maior mostra do gênero já feita no Brasil, tenha sido exatamente o tratamento dado ao Brasil. Mas, antes de chegar nisso, é preciso abordar alguns aspectos. O primeiro deles é que a exposição tem muitos méritos. Muitos mesmo. O Brasil está começando a consolidar sua cultura fashion. De dez anos para cá, a moda tem despertado um crescente interesse no grande público e na mídia -daí o excelente timing de fazer uma mostra realmente abrangente, que possa não apenas trazer peças e fotos históricas, mas exibir roupas novas, de desfiles recentes e de estilistas em ascensão -e não apenas os medalhões, os mais famosos.
"Fashion Passion" consegue isso. Só que, justamente por estarmos começando a educação do país sobre moda, é preciso bem mais atenção em relação a quem está chegando agora, às novas gerações (e novos consumidores). O prédio foi dividido em dez pavilhões, em que os estilistas são agrupados por afinidades. A solução é inteligente e inspiradora. Entretanto esse modelo só funcionaria caso houvesse biografias dos 26 criadores internacionais e se os textos de aberturas das salas não fossem tão rebuscados e pretensamente eruditos.
Na primeira grande mostra sobre moda no Brasil, então, custava ser didático e simples?

MOSTRA INCORRE EM ERROS HISTÓRICOS
"Poiret está vivo?", perguntou um adolescente que via a exposição "Fashion Passion" na última terça-feira. A dúvida se deu logo no primeiro pavilhão, quando o estilista dos anos 20 aparece ao lado de Galliano e Lacroix. Sem mais explicações, a mostra toda vira um grande passeio no shopping, em que você vai olhando tudo, achando bonito, mas sem parar muito em nada.
Afinal, não dá para saber qual a diferença entre prêt-à-porter e alta-costura (a maioria das peças da mostra é deste segmento); se Junya Watanabe é homem ou mulher; se Gabrielle e Coco Chanel são a mesma pessoa; o que é um caban ou o que é raglan; o que seria o "espírito suéter"; se Saint Laurent ainda está na ativa; quem seria exatamente Fanny Feigenson; se é mesmo a Björk na foto de Nick Knight na sala do McQueen; por que é rosa a sala de Schiaparelli; de quando são os quatro looks de Vivienne Westwood perdidos ali antes do Gaultier -e a Vivienne não era aquela do punk? E uma certa Marianne na foto de Viktor & Rolf seria a brasileira Mariana Weickert?
"A panóplia desses latinos exuberantes, que falam com as mãos, tão à vontade em seus sapatos cromados quanto em suas roupas esportivas, negligentemente enrodilhadas à volta do pescoço", "explica" o texto sobre Versace e Pucci, exemplo das patavinas retóricas que infestam as paredes da Oca.
Há erros de informação e datas em vídeos e nas (quase sempre) toscas legendas. O incrível vídeo da coleção azul da dupla holandesa Viktor & Rolf ganha registro de 1999, quando aconteceu em 9 de março de 2002. A imagem clássica de Chanel por Man Ray, segundo a legenda, foi feita em 2004. E os sensacionais vídeos da Comme des Garçons são creditados como de Martin Margiela.

VESTIDOS IMPORTANTES PASSAM BATIDO
Há vestidos lindíssimos que adorei ver na "Fashion Passion". Entre eles, o multicolorido vestido de McQueen do verão 2003 -para mim, o mais bonito da mostra. Adoro também o pink da Comme des Garçons. E achei muito importantes as salas dedicadas aos prodígios Nicolas Ghesquiere e Olivier Theyskens. Infelizmente para o público, não fica muito explicado o trabalho deles de renovação à frente das maisons Balenciaga e Rochas, o que é pena, pois são fundamentais as roupas e imagens dos dois. O vestido preto do inverno 2004, coleção que consagrou Olivier Theyskens na Rochas, está creditado errado (a legenda diz que é dele, e não para a Rochas).
Por fim, ficam também completamente perdidos os vestidos de celebridades como Evita e Marlene Dietrich. Nada acrescentam e confundem o visitante.

TOP GAFES
Saint Laurent, coitado, ganhou uma sala pífia, que não corresponde à sua importância na moda. E o que se consagra como a maior gafe de todas: a peça que se firmou como a imagem oficial do new look de Christian Dior, que mudou a história da moda em 1947, mereceu em "Fashion Passion" somente a explicação: "Chapéu de Palha".
Melhor seguir um dos simpáticos e esforçados monitores para tentar entender alguma coisa.

MODA BRASILEIRA DO CRIOULO DOIDO
"Fashion Passion" parece ter vergonha da moda brasileira. Se não por isso, como explicar a "opção" de não mostrar roupas, mas "aspectos da cultura brasileira como respostas aos temas propostos em cada pavilhão"? Roupa a gente tem. Em vez disso, as escolhas mostradas servem para reforçar o complexo de inferioridade, a baixa auto-estima e a síndrome de colonização, que a atual moda brasileira quer rechaçar e, a partir daí, construir nova identidade.
Se não por isso, por que responder à genial sobreposição de Yohji Yamamoto, Comme des Garçons e Margiela com uma foto de uma... favela? Por que responder com dois anjos barrocos malquebrados a sofisticada construção de Mugler, Charles James e Ghesquiere? Não poderia ser Alexandre Herchcovitch? A resposta ao exotismo de Lacroix e Galliano é o manto bordado a mão de Arthur Bispo do Rosário. Não poderia ser Lino Villaventura? Por que responder ao "mistério do vestido Cinderela", que reúne Dior e Olivier Theyskens, com a sombria obra de Carmela Gross? Não poderia ser Conrado Segreto? E a resposta a Alaïa e Vionnet ("Ode ao Corpo") não poderia ser Walter Rodrigues?
A mostra responde Chanel com três exemplos de penduricalhos no pescoço, retrocedendo até para uma escrava baiana (?!). Chanel não tem mesmo resposta. Nem aqui nem na China. Ícones são assim.
O Brasil poderia ter ficado só com um pavilhão, mas menos estereotipado. Aqui, faltou carinho, faltou respeito. Nas roupas, muitos clichês -de futebol, sexo e verde-amarelo. "Vai daí que nosso "visú" é energético e cheio de truques", justifica o texto da mostra. Nesse deprimente samba do crioulo doido, faltou só um garçom passando caipirinha (o Brazilian drinque).


Texto Anterior: Livros: Festa gaúcha chega a "jubileu de ouro" maior e estrangeira
Próximo Texto: Música eletrônica: Com turnês, brasileiros ganham reconhecimento europeu
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.