|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RODAPÉ
Palmilhando Clarice Lispector
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
"Clarice Lispector com a
Ponta dos Dedos" alude,
desde o título, à costumeira divisão em duas águas da obra da autora de "Laços de Família" (60),
colocando, de um lado, os livros
escritos por compulsão interior,
nos quais Clarice se reconhece
por inteiro, e, no pólo oposto, textos quase de circunstância, posteriores a "A Paixão Segundo G.H."
(64), produzidos sob a pressão da
necessidade, muitas vezes reaproveitando rejeitos da gaveta de
guardados. A ponta dos dedos refere-se, portanto, não ao cuidado
minucioso que se emprega em tarefa delicada, mas a uma profilática distância em relação aos textos
finais (exceção feita a "A Hora da
Estrela", canto do cisne de 1977),
indignos do mesmo apreço.
Rejeitando a tese disjuntiva, a
ensaísta e contista Vilma Arêas
mergulha as mãos na massa e, em
análises como as de "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres"
(69) e "A Via-Crúcis do Corpo"
(74), colhe uma infinidade de observações críticas que apóiam sua
intuição. Apesar do discurso manifesto da crítica e da própria Clarice, também obras de ocasião
guardam marcas profundas do
"ritmo de procura" (Antonio
Candido) que animou seu percurso de livro a livro, não excluídos
nem mesmo os infantis, como "A
Vida Íntima de Laura" (74) e sua
galinha pouco edulcorante, estudada em "Children's Córner".
Estreitar esse abismo cavado
pelos lugares-comuns da recepção de Clarice implica estabelecer
pontes que ampliam o horizonte
do livro para além da obra tardia,
em cujos livros seus capítulos
(menos o último, "Mistério Desentranhado", dedicado a uma
leitura comparada de "At the
Bay", de Katherine Mansfield, e
"Mistério em São Cristóvão") estão nucleados. Neste movimento,
Vilma apanha a recusa clariceana
de se comprazer em fórmulas
bem-sucedidas, inclusive as da
acuidade introspectiva, hermética, herdeira consumada de procedimentos do alto modernismo,
que marca seus primeiros textos e
fez o assombro da crítica.
A convivência íntima com a totalidade da obra permite, por
exemplo, colocar em outra perspectiva a acolhida fria de "Uma
Aprendizagem ou o Livro dos
Prazeres", romance em que um
encontro de iniciação e aprendizado envolvendo uma menina e
um professor ecoa motivo recorrente na obra de Clarice. A novidade está na chave estilística,
construindo a personagem do homem mais velho em tom que resvala surpreendente didatismo
quase pedante. Essa inadequação
antecipa o processo tratado no capítulo que se ocupa de "A Via-Crúcis do Corpo", em que a obsessão com a linguagem, mística
profana, se casa ao tema do erotismo feminino, legítima e inesperadamente deslocado a territórios
pouco explorados pela literatura
(o da velhice, por exemplo).
Nele, Vilma Arêas aponta um
flerte de Clarice com a linguagem
voluntariamente mal-acabada,
defesa contra qualquer movimento excessivamente ascensional do
estilo, o "escrever bonito". Essa
disposição para a paródia, o tosco, as matrizes menos nobres da
literatura confirma o espírito rebelde e moderno da autora, pouco à vontade nos rótulos, mesmo
que elogios na superfície. E Clarice o exerce sem abandonar as
grandes questões, reconfiguradas
sob a nova máscara formal.
O aspecto que estas questões assumem em "A Hora da Estrela",
pedra no sapato da separação de
esferas na obra de Clarice, é examinado a partir de duas aproximações díspares: com o Graciliano Ramos de "Vidas Secas", em
que, devidamente pesadas as
enormes diferenças, enfrenta a dificuldade comum de como dar
corpo à voz interior de subjetividades toscas, impedidas de se
constituir plenamente; e com a
dor do mundo convertida em comicidade e circo, tão bem encarnada pelo cinema felliniano.
A abordagem inédita da miséria
social, a voz narrativa disfarçada e
errante, o aspecto circense de Macabéa e Olímpico fazem do livro
"alto trapézio", "ameaçado constantemente de ruína ou fracasso
literário", se espelhando e fugindo dos modelos do melodrama,
do realismo novecentista, do
kitsch, e construindo uma singularidade complexa. O cuidado e a
vivacidade da análise coroam um
livro de crítica de mão cheia.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos
Autor: Vilma Arêas
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35 (192 págs.)
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Livros - Biografia: Jornalista Tarso de Castro ganha revisão passional Índice
|