São Paulo, sábado, 29 de outubro de 2005

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RODAPÉ

Palmilhando Clarice Lispector

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

"Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos" alude, desde o título, à costumeira divisão em duas águas da obra da autora de "Laços de Família" (60), colocando, de um lado, os livros escritos por compulsão interior, nos quais Clarice se reconhece por inteiro, e, no pólo oposto, textos quase de circunstância, posteriores a "A Paixão Segundo G.H." (64), produzidos sob a pressão da necessidade, muitas vezes reaproveitando rejeitos da gaveta de guardados. A ponta dos dedos refere-se, portanto, não ao cuidado minucioso que se emprega em tarefa delicada, mas a uma profilática distância em relação aos textos finais (exceção feita a "A Hora da Estrela", canto do cisne de 1977), indignos do mesmo apreço.
Rejeitando a tese disjuntiva, a ensaísta e contista Vilma Arêas mergulha as mãos na massa e, em análises como as de "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres" (69) e "A Via-Crúcis do Corpo" (74), colhe uma infinidade de observações críticas que apóiam sua intuição. Apesar do discurso manifesto da crítica e da própria Clarice, também obras de ocasião guardam marcas profundas do "ritmo de procura" (Antonio Candido) que animou seu percurso de livro a livro, não excluídos nem mesmo os infantis, como "A Vida Íntima de Laura" (74) e sua galinha pouco edulcorante, estudada em "Children's Córner".
Estreitar esse abismo cavado pelos lugares-comuns da recepção de Clarice implica estabelecer pontes que ampliam o horizonte do livro para além da obra tardia, em cujos livros seus capítulos (menos o último, "Mistério Desentranhado", dedicado a uma leitura comparada de "At the Bay", de Katherine Mansfield, e "Mistério em São Cristóvão") estão nucleados. Neste movimento, Vilma apanha a recusa clariceana de se comprazer em fórmulas bem-sucedidas, inclusive as da acuidade introspectiva, hermética, herdeira consumada de procedimentos do alto modernismo, que marca seus primeiros textos e fez o assombro da crítica.
A convivência íntima com a totalidade da obra permite, por exemplo, colocar em outra perspectiva a acolhida fria de "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres", romance em que um encontro de iniciação e aprendizado envolvendo uma menina e um professor ecoa motivo recorrente na obra de Clarice. A novidade está na chave estilística, construindo a personagem do homem mais velho em tom que resvala surpreendente didatismo quase pedante. Essa inadequação antecipa o processo tratado no capítulo que se ocupa de "A Via-Crúcis do Corpo", em que a obsessão com a linguagem, mística profana, se casa ao tema do erotismo feminino, legítima e inesperadamente deslocado a territórios pouco explorados pela literatura (o da velhice, por exemplo).
Nele, Vilma Arêas aponta um flerte de Clarice com a linguagem voluntariamente mal-acabada, defesa contra qualquer movimento excessivamente ascensional do estilo, o "escrever bonito". Essa disposição para a paródia, o tosco, as matrizes menos nobres da literatura confirma o espírito rebelde e moderno da autora, pouco à vontade nos rótulos, mesmo que elogios na superfície. E Clarice o exerce sem abandonar as grandes questões, reconfiguradas sob a nova máscara formal.
O aspecto que estas questões assumem em "A Hora da Estrela", pedra no sapato da separação de esferas na obra de Clarice, é examinado a partir de duas aproximações díspares: com o Graciliano Ramos de "Vidas Secas", em que, devidamente pesadas as enormes diferenças, enfrenta a dificuldade comum de como dar corpo à voz interior de subjetividades toscas, impedidas de se constituir plenamente; e com a dor do mundo convertida em comicidade e circo, tão bem encarnada pelo cinema felliniano.
A abordagem inédita da miséria social, a voz narrativa disfarçada e errante, o aspecto circense de Macabéa e Olímpico fazem do livro "alto trapézio", "ameaçado constantemente de ruína ou fracasso literário", se espelhando e fugindo dos modelos do melodrama, do realismo novecentista, do kitsch, e construindo uma singularidade complexa. O cuidado e a vivacidade da análise coroam um livro de crítica de mão cheia.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos
    
Autor: Vilma Arêas
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35 (192 págs.)


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