São Paulo, quinta, 29 de outubro de 1998

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Cenas de uma incursão nova-iorquina

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Estive em Nova York por alguns dias fazendo palestra sobre as perspectivas da nossa economia. Seria uma viagem de rotina, como outras que tenho feito dentro e fora do Brasil, não fosse por duas circunstâncias: o momento delicado pelo qual estamos passando e o privilégio de dividir a mesa com o quase lendário Paul Samuelson, autor do mais influente livro-texto de economia do século 20.
Quando agendei o encontro, no início do ano, sabia que ele ocorreria em plena temporada eleitoral, mas não podia imaginar que acertaria na mosca da turbulência que nos sacode.
Isso, é claro, não só alterou por completo o foco de interesse do evento como demandou carga redobrada de trabalho. De repente, era toda uma nova conjuntura de detalhes e possíveis desdobramentos que precisava ser dominada. Ossos do ofício.
A ansiedade externa com o Brasil é enorme. Na véspera da palestra, só para dar uma idéia do clima, um editorial do "Wall Street Journal" desancava a atuação recente do FMI na Ásia e na Rússia e comentava o risco de que um acordo do Brasil com o órgão pudesse representar não uma saída de emergência ou um alívio para os nossos problemas, mas o "beijo da morte".
Como Milton Friedman, o "WSJ" vem pregando a extinção sumária do Fundo. Os mercados que se acertem.
O dilema sempre existe. Mas, diante de uma situação de crise e incerteza como a que estamos atravessando, ele se torna agudo. Tendo que me dirigir a banqueiros, consultores e investidores estrangeiros de cuja confiança depende, em boa medida, a retomada do nosso financiamento externo e a recuperação do país, como proceder?
"Cada ser humano", dizia Novalis, "é uma pequena sociedade". Enquanto preparava minha fala nova-iorquina, trancado num hotel no coração de Manhattan e tentando não pensar no mar de delícias que me aguardava nas ruas, livrarias e vida cultural lá fora, pude sentir de perto o apelo de duas facções competindo pelo teor da mensagem que tentaria transmitir.
De um lado, o patriota-torcedor. Como bom brasileiro, torço para que o nosso país recupere a confiança e o crédito externos e gostaria de poder colaborar para que isso aconteça o quanto antes. Eis aí, pensei comigo, uma chance concreta. Por que não dourar um pouco a pílula? Não seria o caso, nesta hora de aperto, de me esforçar para "dar uma força" e vender a imagem mais favorável e otimista do Brasil de que sou capaz?
Do outro lado, contudo, a voz do analista. Como pesquisador, todo o meu treino é cuidar para que os meus sentimentos e preferências subjetivas não atropelem a minha capacidade de ver e analisar as coisas de forma isenta. É por causa disso, imagino, que me chamam. O compromisso que tenho é com a máxima objetividade. Por que adaptar o meu discurso à platéia e dar uma de patriota agora? Na crise é que se revela a fibra.
Foi uma negociação lenta e escorregadia. Depois de ponderar os prós e contras de cada facção, terminei optando pelo que chamei de realismo construtivo. Não sou membro do governo nem atuo no mercado financeiro. Se não for um analista isento, capaz de preservar a minha independência mesmo sob pressão, então o que sou?
A solução foi dar a palavra ao analista, mas podar os excessos e temperar o tom do discurso. Nada de dourar a pílula, nada de alterar o que diria se a palestra fosse no Brasil; mas também nada de carregar demais nas tintas do potencial da crise ou ficar tripudiando em cima da precariedade de nossas finanças públicas.
Nem bombeiro, nem incendiário.
O elemento construtivo ficou por conta da ênfase que resolvi dar às políticas alternativas para enfrentar a crise, com ou sem mudança no regime cambial, em vez de ficar esmiuçando o diagnóstico. Analisei os riscos e custos envolvidos nos diferentes caminhos e rezei para que ninguém do público viesse me cobrar probabilidades de sucesso em cada caso. É sempre melhor estar vagamente certo do que precisamente errado.
A outra circunstância peculiar de minha incursão nova- iorquina -felizmente, mais amena- foi a chance de ouvir e estar pessoalmente com aquele que é, ao lado de seu arqui-rival de geração, Milton Friedman, o mais destacado macroeconomista norte-americano do pós-guerra.
Foi no "Economics" de Samuelson (ainda hoje o livro- texto adotado na USP e disponível em mais de 40 línguas) que primeiro tomei contato, em meados dos anos 70, com os rigores e caminhos da "ciência lúgubre".
Confesso que, naquela época, eu andava obcecado pela idéia de estudar Hegel e Marx -fui fazer Ciências Sociais só por causa disso- e olhava com profundo desprezo para o positivismo insípido e vulgar daquelas fórmulas e gráficos que éramos forçados a engolir na Economia.
Incapaz de lidar com a dialética da relação entre essência e aparência e presa ao horizonte da consciência possível da burguesia, a "síntese neoclássica" de Samuelson sucumbia ao fetichismo das mercadorias, reificava a técnica e perdia inteiramente de vista as contradições inerentes ao capitalismo monopolista. Como eu me arrependo, hoje em dia, de não ter sabido aproveitar melhor aqueles preciosos anos...
Do alto dos seus 83 anos, Samuelson é um veterano das "crises finais do capitalismo". Ele nos ofereceu uma visão lúcida e panorâmica da economia global e sugeriu que, embora a desaceleração em curso possa levar a uma recessão (dependendo da capacidade de ação coordenada dos bancos centrais), a chance de que algo como a Grande Depressão dos anos 30 volte a se repetir é próxima de zero.
O que mais me chamou a atenção, porém, não foi algo que tenha dito, mas a sua atitude desassombrada frente ao saber.
Ao contrário de Friedman, que se coloca como o portador de uma verdade à qual ele quer converter o mundo, Samuelson se apresenta como um investigador capaz de duvidar e rir de si mesmo, como alguém que permanece aberto à busca e à descoberta do inesperado. Não tem a retórica lancinante do pregador, é certo, mas mantém acesa a chama do amor ao conhecimento que é a marca do verdadeiro cientista.



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