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Cenas de uma incursão nova-iorquina
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Estive em Nova York por alguns dias fazendo palestra sobre as perspectivas da nossa
economia. Seria uma viagem
de rotina, como outras que tenho feito dentro e fora do Brasil, não fosse por duas circunstâncias: o momento delicado
pelo qual estamos passando e o
privilégio de dividir a mesa
com o quase lendário Paul Samuelson, autor do mais influente livro-texto de economia do século 20.
Quando agendei o encontro,
no início do ano, sabia que ele
ocorreria em plena temporada
eleitoral, mas não podia imaginar que acertaria na mosca
da turbulência que nos sacode.
Isso, é claro, não só alterou
por completo o foco de interesse do evento como demandou
carga redobrada de trabalho.
De repente, era toda uma nova
conjuntura de detalhes e possíveis desdobramentos que precisava ser dominada. Ossos do
ofício.
A ansiedade externa com o
Brasil é enorme. Na véspera da
palestra, só para dar uma idéia
do clima, um editorial do
"Wall Street Journal" desancava a atuação recente do FMI
na Ásia e na Rússia e comentava o risco de que um acordo do
Brasil com o órgão pudesse representar não uma saída de
emergência ou um alívio para
os nossos problemas, mas o
"beijo da morte".
Como Milton Friedman, o
"WSJ" vem pregando a extinção sumária do Fundo. Os
mercados que se acertem.
O dilema sempre existe. Mas,
diante de uma situação de crise e incerteza como a que estamos atravessando, ele se torna
agudo. Tendo que me dirigir a
banqueiros, consultores e investidores estrangeiros de cuja
confiança depende, em boa
medida, a retomada do nosso
financiamento externo e a recuperação do país, como proceder?
"Cada ser humano", dizia
Novalis, "é uma pequena sociedade". Enquanto preparava
minha fala nova-iorquina,
trancado num hotel no coração de Manhattan e tentando
não pensar no mar de delícias
que me aguardava nas ruas, livrarias e vida cultural lá fora,
pude sentir de perto o apelo de
duas facções competindo pelo
teor da mensagem que tentaria
transmitir.
De um lado, o patriota-torcedor. Como bom brasileiro, torço para que o nosso país recupere a confiança e o crédito externos e gostaria de poder colaborar para que isso aconteça o
quanto antes. Eis aí, pensei comigo, uma chance concreta.
Por que não dourar um pouco
a pílula? Não seria o caso, nesta hora de aperto, de me esforçar para "dar uma força" e
vender a imagem mais favorável e otimista do Brasil de que
sou capaz?
Do outro lado, contudo, a voz
do analista. Como pesquisador, todo o meu treino é cuidar
para que os meus sentimentos
e preferências subjetivas não
atropelem a minha capacidade
de ver e analisar as coisas de
forma isenta. É por causa disso, imagino, que me chamam.
O compromisso que tenho é
com a máxima objetividade.
Por que adaptar o meu discurso à platéia e dar uma de patriota agora? Na crise é que se
revela a fibra.
Foi uma negociação lenta e
escorregadia. Depois de ponderar os prós e contras de cada
facção, terminei optando pelo
que chamei de realismo construtivo. Não sou membro do
governo nem atuo no mercado
financeiro. Se não for um analista isento, capaz de preservar
a minha independência mesmo sob pressão, então o que
sou?
A solução foi dar a palavra
ao analista, mas podar os excessos e temperar o tom do discurso. Nada de dourar a pílula,
nada de alterar o que diria se a
palestra fosse no Brasil; mas
também nada de carregar demais nas tintas do potencial da
crise ou ficar tripudiando em
cima da precariedade de nossas finanças públicas.
Nem bombeiro, nem incendiário.
O elemento construtivo ficou
por conta da ênfase que resolvi
dar às políticas alternativas
para enfrentar a crise, com ou
sem mudança no regime cambial, em vez de ficar esmiuçando o diagnóstico. Analisei os
riscos e custos envolvidos nos
diferentes caminhos e rezei para que ninguém do público
viesse me cobrar probabilidades de sucesso em cada caso. É
sempre melhor estar vagamente certo do que precisamente
errado.
A outra circunstância peculiar de minha incursão nova-
iorquina -felizmente, mais
amena- foi a chance de ouvir
e estar pessoalmente com
aquele que é, ao lado de seu arqui-rival de geração, Milton
Friedman, o mais destacado
macroeconomista norte-americano do pós-guerra.
Foi no "Economics" de Samuelson (ainda hoje o livro-
texto adotado na USP e disponível em mais de 40 línguas)
que primeiro tomei contato,
em meados dos anos 70, com os
rigores e caminhos da "ciência
lúgubre".
Confesso que, naquela época,
eu andava obcecado pela idéia
de estudar Hegel e Marx -fui
fazer Ciências Sociais só por
causa disso- e olhava com
profundo desprezo para o positivismo insípido e vulgar daquelas fórmulas e gráficos que
éramos forçados a engolir na
Economia.
Incapaz de lidar com a dialética da relação entre essência e
aparência e presa ao horizonte
da consciência possível da burguesia, a "síntese neoclássica"
de Samuelson sucumbia ao fetichismo das mercadorias, reificava a técnica e perdia inteiramente de vista as contradições inerentes ao capitalismo
monopolista. Como eu me arrependo, hoje em dia, de não
ter sabido aproveitar melhor
aqueles preciosos anos...
Do alto dos seus 83 anos, Samuelson é um veterano das
"crises finais do capitalismo".
Ele nos ofereceu uma visão lúcida e panorâmica da economia global e sugeriu que, embora a desaceleração em curso
possa levar a uma recessão (dependendo da capacidade de
ação coordenada dos bancos
centrais), a chance de que algo
como a Grande Depressão dos
anos 30 volte a se repetir é próxima de zero.
O que mais me chamou a
atenção, porém, não foi algo
que tenha dito, mas a sua atitude desassombrada frente ao
saber.
Ao contrário de Friedman,
que se coloca como o portador
de uma verdade à qual ele quer
converter o mundo, Samuelson
se apresenta como um investigador capaz de duvidar e rir de
si mesmo, como alguém que
permanece aberto à busca e à
descoberta do inesperado. Não
tem a retórica lancinante do
pregador, é certo, mas mantém
acesa a chama do amor ao conhecimento que é a marca do
verdadeiro cientista.
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