São Paulo, terça-feira, 29 de novembro de 2005

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MÚSICA/CRÍTICA

Três volumes reúnem o paraíso musical de Moacir Santos

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"Paraíso." A palavra corria como uma senha, entre os músicos, nessas últimas semanas. Composta em 1988, "Paraíso" é a terceira faixa do recém-lançado CD "Choros e Alegrias", que completa uma trilogia iniciada com "Ouro Negro", em 2001, e continuada pelo relançamento de "Coisas" em 2004 (originalmente gravado em 1965). Os três discos não cobrem tudo o que ele fez, mas dão a dimensão da música de Moacir Santos, que chega agora a outro estágio de reconhecimento com a edição das partituras deste "Cancioneiro", em três volumes.
"Paraíso" é em dó menor, mas aqui, como em vários outros casos, a tonalidade menor abriga ambigüidades de maior. Do início ao fim, o coral de metais reflete luzes de um e de outro lado da gama. Uma coisa, por exemplo, é o dó menor chegar a mi bemol maior, seu vizinho próximo. Bem outra é a harmonia passar por um mi menor escancarado, chocando com a melodia. Mas é justamente da tensão entre as notas mi bemol (que define a tonalidade menor) e mi natural (que define a tonalidade maior) que essa música escava seus mistérios, reinventando um tipo ancestral de instabilidade harmônica.
Como que a comprovar o que foi dito, o último e espantoso acorde de "Paraíso" é nada menos do que a junção de dó maior, na mão esquerda, com dó menor, na direita. Detalhes como esse não são detalhes, são a própria música de Moacir Santos, que agora, depois de tantos anos, se pode escutar e ler como merece.
Primorosamente editadas por Zé Nogueira e Mario Adnet -a mesma dupla que produziu os discos-, as partituras de "Ouro Negro" e "Choros e Alegrias" vêm escritas para um instrumento melódico e piano. Já as "Coisas" foram transcritas no esplendor da partitura aberta, para orquestra (flauta, metais, cordas, guitarra, piano e percussão, em combinações variadas).
É um paraíso dos arranjadores. Ali está, por exemplo, a mitológica "Coisa nš 5", tema do filme "Ganga Zumba", de Carlos Diegues (1963), no nascedouro de uma nova vertente negra da música popular moderna no Brasil, com desenhos melódicos diferentes e inusitadas complexidades rítmicas. Os afro-sambas de Baden e Vinicius nutriram-se disso -como Vinicius deixou claro, ao pedir a benção a Moacir Santos, no "Samba da Bênção".
Três anos depois, o maestro pernambucano, então com 40 anos, mudava-se para a Califórnia, onde mora até hoje. Entre nós, sua música tem sido uma seiva meio invisível esse tempo todo, admiradíssima e esgotadíssima; novamente acessível e legível, só deve ampliar sua influência.
Uma canção como "Maracatu, Nação do Amor" (arrebatadora e engenhosamente tramada nas enarmonias de ré bemol maior/ mi maior), uma marcha-rancho como "Agora Eu Sei" (com riquezas de contraponto a quatro vozes), ou choros como "Flores" e "Cleonix" (motos-perpétuos cromáticos) são coisas que, hoje, com a dupla bênção dos discos e das partituras, vão se tornando propriedade íntima de cada um de nós. Elas compõem um acervo único de beleza e alegria, num registro raro de serenidade. Enfim: é um paraíso. O que, no caso de Moacir Santos, é só um dos nomes da música.


Cancioneiro (três volumes)
    
Autor: Moacir Santos
Editora: Jobim Music
Quanto: de R$ 47 a R$ 61 (cada volume)


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