São Paulo, segunda-feira, 29 de novembro de 2010

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Democracia nos palcos

Maratona teatral encerrada ontem, 11ª Satyrianas oscila entre a pluralidade e a falta de critérios

Érika Garrido/Folhapress
Pessoas esperam para ver peça na esquina da r. Caio Prado com r. Augusta, no sábado

BERNARDO CARVALHO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Em tempos de crise de critérios, é compreensível que a arte tente se associar a noções inquestionáveis, como a democracia. A cia. de teatro Os Satyros fez dessa associação uma de suas palavras de ordem. E das Satyrianas, maratona de peças anual cuja 11ª edição terminou ontem, sua expressão máxima.
Tem de tudo nas Satyrianas (o princípio é da inclusão). Desde um espetáculo como "Hipóteses para o Amor e a Verdade", em que os Satyros fazem uma encenação original, e por vezes surpreendente, da sexualidade urbana mediada por computadores, celulares e imagens virtuais (com intervenções, em tempo real, entre a cena e o mundo exterior), até um drama singelo e convencional, como "Réquiem", com falas do tipo "lágrimas nos cantos dos olhos são para privilegiados, não para nós", ali ao lado, no espaço dos Parlapatões.
Para juntar consenso com pluralidade e inclusão de concepções artísticas claramente divergentes, se não contraditórias, é preciso desviar o foco das peças (e de sua eventual qualidade) para o evento, para a rua, o que já ocorria em grande parte com a ocupação e revitalização da praça Roosevelt, um dos principais apelos midiáticos dos Satyros.

COMÉDIA DE BULEVAR
Durante as Satyrianas, você pode sair de um espetáculo poderoso como "Roberto Zucco", montagem do texto de Bernard-Marie Koltès dirigida por Rodolfo García Vázquez, e entrar sem querer (e para seu azar), enquanto faz hora para uma apresentação à meia-noite, numa tenda onde gente que em princípio nada tem que ver com os Satyros encena uma espécie de reciclagem de comédia de bulevar sobre o dilema de um homem entre amputar o pênis canceroso ou morrer depois de mais um ano de sexo.
O público, recheado de amigos e membros da classe, no final aplaude de pé, como é de praxe.
Por um lado, democracia é diversidade. E ninguém de bom-senso é contra a diversidade. Mas, por outro, também é a tenda lotada da comédia de bulevar, enquanto, a poucos metros, menos de dez gatos pingados assistem a uma experimentação de dança-teatro.
Você dirá que é normal. Que o público escolhe. Então há de convir que, para você, democracia, em arte, equivale à lei do mercado e ao imperativo do gosto -o que é paradoxalmente uma sentença de morte para a diversidade da arte.

CRISE DE CRITÉRIOS
Num outro tempo de crise de critérios, um célebre crítico americano (Harold Rosenberg), defendia a lógica de que ou uma coisa era arte, ou era inquestionável. Não dava para ser os dois. Logo se vê a armadilha, as consequências e as contradições, de confundir arte com democracia.
E daí a necessidade de desviar o foco para a rua e para o evento. Na praça Roosevelt, a democracia está na inquestionável e bem-vinda mobilização social e cultural, na convivência e na incrível inclusão, pela ação do teatro (com limites, é claro), de uma região degradada e de uma população excluída.
O mais interessante dos Satyros, entretanto, é que esse sentido de oportunidade, num momento de desbaratamento dos critérios, também esteja integrado à própria estética do grupo.
A resposta dos Satyros à ansiedade da crise é o excesso: se não é possível distinguir agora, então que se produza ao máximo e que se deixe a avaliação para depois.
E é até possível que a estratégia acabe dando certo. Se depender, paradoxalmente, de peças como a comédia de bulevar sobre o pênis canceroso. Porque, com parâmetros assim, fica mais fácil entender que, se você quiser ver teatro de verdade, vai ter que procurar em outra tenda.


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