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São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 2003

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LIVRO

Autora investiga violência armada

Socióloga constrói perfil dos "cabras"

SHIN OLIVA SUZUKI
DA REDAÇÃO

"Tenho uma coisa dentro de mim, aquela vontade de ser ruim. Sempre tive três desejos: quebrar o braço, virar o carro e matar uma pessoa. Já realizei dois."
Disparada nas páginas do livro "Como se Fabrica um Pistoleiro", da socióloga Peregrina Cavalcante, a frase acima não saiu do tambor giratório de algum matador profissional. Esfumaçando instinto agressivo, o depoimento foi dado pela matriarca de uma família proprietária de terras no vale do Jaguaribe, sertão cearense. A autora não só se dispõe a investigar e construir o perfil dos chamados "cabras", mas também examina as origens de uma cultura e relações baseadas na violência.
Professora da Universidade Federal do Ceará, Cavalcante baseou sua tese de doutorado, origem do livro, "no olhar da sociedade brasileira pela ótica da violência. A violência fundante de nossa sociedade".
Recupera, assim, a história das regiões circundantes do rio Jaguaribe, cujo ponto determinante para a configuração atual é estabelecido no Brasil colonial, quando do extermínio de índios seguido da ocupação e defesa a ferro e a fogo das terras conquistadas.
"Fundou-se aqui uma cultura da violência por causa da violência da cultura. O genocídio indígena foi a primeira violência. Pacificados e domesticados, eles foram incorporados às fazendas, engrossando as linhas de exércitos particulares, que eram defensores da terra, do gado, da vida e dos valores de seus patrões."
O fortalecimento de governos locais, paralelo ao esmorecimento do poder federal na Primeira República, fez com que famílias tradicionais resolvessem questões entre si sem arbitragem. Ou seja, muitas vezes, à bala. A honra ferida -que podia estar relacionada a temas políticos, econômicos e morais- fomentava o ódio nas cercanias do Jaguaribe, e o pistoleiro era o meio para consumá-lo.
Durante a pesquisa, que incluiu períodos de vivência em fazendas da região, Cavalcante diz que aprendeu o código local para compreender o que pistoleiros e membros dos clãs relatavam; antes, empreendeu seis meses de esforços para ganhar a confiança dos entrevistados.
"O problema é que não conhecia a história do lugar. Interrompi a pesquisa, voltei para Fortaleza e passei cinco meses lendo toda a bibliografia do Ceará antigo. Assim pude entender a importância da família e da linguagem."
De volta ao sertão, a socióloga começou a reunir declarações dos protagonistas desse universo, que corroboram a atmosfera de terror sempre presente: há o jurado de morte ("Sou o portador do medo que as pessoas também têm"), o vendedor de armas ("Existe o desejo nos homens de possuírem armas. (...) Eles (...) se sentem seguros estando com uma") e o pistoleiro nato ("Por qualquer coisa ficava com raiva, vinha logo a vontade de matar").
Junto aos personagens, estão relatos das crenças e práticas de religiosidade que acompanham os pistoleiros que, segundo o livro, estão divididos entre cultos a santos e pactos com o Diabo, além de superstições bizarras -em uma delas, para que o pistoleiro "fique invisível", deve-se comer favas introduzidas no corpo de um gato enterrado vivo, guardadas em diversas partes do corpo pelo período de uma semana.
Embora tenha se modernizado, ganhando autonomia dos grandes proprietários da região, a pistolagem ainda guarda resquícios de velhas práticas: "Quando um "cabra" sabe demais, ele pode ser enviado para algum local distante, com a tarefa de entregar uma encomenda. E nela diz que o destinatário deve executar o pistoleiro. Ou seja, ele leva a própria decretação de sua morte."

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