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LIVRO
Autora investiga violência armada
Socióloga constrói perfil dos "cabras"
SHIN OLIVA SUZUKI
DA REDAÇÃO
"Tenho uma coisa dentro de
mim, aquela vontade de ser ruim.
Sempre tive três desejos: quebrar
o braço, virar o carro e matar uma
pessoa. Já realizei dois."
Disparada nas páginas do livro
"Como se Fabrica um Pistoleiro",
da socióloga Peregrina Cavalcante, a frase acima não saiu do tambor giratório de algum matador
profissional. Esfumaçando instinto agressivo, o depoimento foi dado pela matriarca de uma família
proprietária de terras no vale do
Jaguaribe, sertão cearense. A autora não só se dispõe a investigar e
construir o perfil dos chamados
"cabras", mas também examina
as origens de uma cultura e relações baseadas na violência.
Professora da Universidade Federal do Ceará, Cavalcante baseou sua tese de doutorado, origem do livro, "no olhar da sociedade brasileira pela ótica da violência. A violência fundante de
nossa sociedade".
Recupera, assim, a história das
regiões circundantes do rio Jaguaribe, cujo ponto determinante para a configuração atual é estabelecido no Brasil colonial, quando do
extermínio de índios seguido da
ocupação e defesa a ferro e a fogo
das terras conquistadas.
"Fundou-se aqui uma cultura
da violência por causa da violência da cultura. O genocídio indígena foi a primeira violência. Pacificados e domesticados, eles foram incorporados às fazendas,
engrossando as linhas de exércitos particulares, que eram defensores da terra, do gado, da vida e
dos valores de seus patrões."
O fortalecimento de governos
locais, paralelo ao esmorecimento
do poder federal na Primeira República, fez com que famílias tradicionais resolvessem questões
entre si sem arbitragem. Ou seja,
muitas vezes, à bala. A honra ferida -que podia estar relacionada
a temas políticos, econômicos e
morais- fomentava o ódio nas
cercanias do Jaguaribe, e o pistoleiro era o meio para consumá-lo.
Durante a pesquisa, que incluiu
períodos de vivência em fazendas
da região, Cavalcante diz que
aprendeu o código local para
compreender o que pistoleiros e
membros dos clãs relatavam; antes, empreendeu seis meses de esforços para ganhar a confiança
dos entrevistados.
"O problema é que não conhecia a história do lugar. Interrompi
a pesquisa, voltei para Fortaleza e
passei cinco meses lendo toda a
bibliografia do Ceará antigo. Assim pude entender a importância
da família e da linguagem."
De volta ao sertão, a socióloga
começou a reunir declarações dos
protagonistas desse universo, que
corroboram a atmosfera de terror
sempre presente: há o jurado de
morte ("Sou o portador do medo
que as pessoas também têm"), o
vendedor de armas ("Existe o desejo nos homens de possuírem armas. (...) Eles (...) se sentem seguros estando com uma") e o pistoleiro nato ("Por qualquer coisa ficava com raiva, vinha logo a vontade de matar").
Junto aos personagens, estão relatos das crenças e práticas de religiosidade que acompanham os
pistoleiros que, segundo o livro,
estão divididos entre cultos a santos e pactos com o Diabo, além de
superstições bizarras -em uma
delas, para que o pistoleiro "fique
invisível", deve-se comer favas introduzidas no corpo de um gato
enterrado vivo, guardadas em diversas partes do corpo pelo período de uma semana.
Embora tenha se modernizado,
ganhando autonomia dos grandes proprietários da região, a pistolagem ainda guarda resquícios
de velhas práticas: "Quando um
"cabra" sabe demais, ele pode ser
enviado para algum local distante, com a tarefa de entregar uma
encomenda. E nela diz que o destinatário deve executar o pistoleiro. Ou seja, ele leva a própria decretação de sua morte."
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