|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANÁLISE
Zé Celso revela atriz no "Roda Viva"
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
O período era propício para os
grandes atores bem antes de começar o programa "Roda Viva" da
última segunda, na TV Cultura.
Em Cuba, o papa e Fidel Castro fizeram um duelo de primas-donas.
Em Washington, Bill Clinton desempenhava o melhor que podia o
seu anti-Don Juan.
No discurso de recepção ao papa, Fidel usava as palavras; João
Paulo 2º, o silêncio. Fidel movia-se, o papa permanecia imóvel.
Do que falava Fidel? Talvez ninguém mais lembre. Todo mundo
estava de olho no velhote alquebrado, com a cabeça imóvel, caída,
escorado em uma grande bengala.
Estaria ele dormindo? Fatigado?
Moribundo? Morto?
Sim, é com a horrível hipótese de
assistirmos sua morte que o papa
joga. Fidel, acostumado a monopolizar a cena, sumiu.
O que pode um ator oferecer de
maior a seu público, senão a sensação de estar vendo a verdade? João
Paulo 2º hoje sabe transmitir isso
como ninguém. Já não é o polonês
massudo, com jeito de boxeur, de
outros tempos. Todo o tempo o
vemos e pensamos na fragilidade,
na finitude e na incompletude humanas.
Não longe dali, Bill Clinton desempenhava o papel de bom marido. Seu problema é que a peça é
ruim. Na verdade, essa mania norte-americana de saber quem trepa
com quem soa um pouco como
um teatro do absurdo para o resto
do mundo. É uma peça meio pornográfica, uma versão "hardcore" de "Janela Indiscreta".
O voyeurismo, nesse caso, é quase insuportável. Clinton joga com
ele: deixa-se entrever, mas não ver.
Fala e some. Na hora do aperto, inflaciona a dúvida para que ela se
esgote por si mesma, se possível.
Estávamos nisso quando o "Roda Viva" colocou em confronto
Zé Celso -franquia Dionisos- e
Bárbara Heliodora -franquia
Shakespeare.
O texto, porém, estava mais para
Tennessee Williams. Zé Celso ensaia uma queixa, uma reconciliação e um brinde. Ela recusa. Ele se
refaz da hesitação: chama a crítica
de burguesa, perversa e frígida
-entre outros. Ela parece uma estátua. Zé Celso quer ganhar a cena
pela violência verbal. Bárbara, pelo silêncio.
No fim, aprendemos pouco ou
nada sobre Shakespeare. Não importa. Sabemos é que ela conhece
Zé Celso intimamente e explora
seus pontos fracos com desenvoltura. Os ataques do diretor são terroristas, como se ele aspirasse a
"estraçalhar" a velha senhora
(um vício de ator é superestimar o
domínio de cena e julgar que ele,
sozinho, lhe dá vantagem no debate).
Quando optou pelo teatro, em
lugar do argumento, Zé Celso
abriu a Bárbara a hipótese do silêncio (também contra o argumento).
Não havia debate, mas teatro. E,
em sua expressão, Bárbara respondia a cada ataque: "Assim é se
lhe parece".
Existe aí uma simetria curiosa.
Zé Celso faz o papa, em "Ela".
Mas na segunda-feira ele representava Fidel. Bárbara Heliodora, tida
como ditadora crítica, representava o papa: a imobilidade, o silêncio.
Estranha inversão. O teatro, assim como a crítica, pode ser um
exercício de poder. O incauto que
chega ao Oficina está sob o poder
do diretor. É claro que isso enfraquece o resultado final, pois estamos num território de convenção:
o estupro é consentido, um jogo de
faz de conta.
No "Roda Viva", a convenção
inexistia (salvo engano), portanto
criou-se um duelo real entre duas
verdades muito distantes.
Se é verdade que Zé Celso, ao
contrário de Fidel, impediu Bárbara Heliodora de dizer seu script,
em troca fez o que não queria: revelou uma atriz capaz de roubar a
cena de um ator experiente.
Nesse programa único, não deixa de ser significativo que Zé Celso
talvez tenha realizado o teatro com
que parece sonhar: uma festa em
que os sentidos são despertados
pelo intelecto. Mas para fazê-lo teve de ceder o papel de honra à velha desafeta.
O "Roda Viva" de segunda
mostrou o teatro como arte viva,
em contraste com a xaropada imitativa que, pouco antes, a Globo
punha no ar. Será assombroso ver
isso no teatro.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|