São Paulo, sexta, 30 de janeiro de 1998

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ANÁLISE
Zé Celso revela atriz no "Roda Viva"

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

O período era propício para os grandes atores bem antes de começar o programa "Roda Viva" da última segunda, na TV Cultura. Em Cuba, o papa e Fidel Castro fizeram um duelo de primas-donas. Em Washington, Bill Clinton desempenhava o melhor que podia o seu anti-Don Juan.
No discurso de recepção ao papa, Fidel usava as palavras; João Paulo 2º, o silêncio. Fidel movia-se, o papa permanecia imóvel. Do que falava Fidel? Talvez ninguém mais lembre. Todo mundo estava de olho no velhote alquebrado, com a cabeça imóvel, caída, escorado em uma grande bengala. Estaria ele dormindo? Fatigado? Moribundo? Morto?
Sim, é com a horrível hipótese de assistirmos sua morte que o papa joga. Fidel, acostumado a monopolizar a cena, sumiu.
O que pode um ator oferecer de maior a seu público, senão a sensação de estar vendo a verdade? João Paulo 2º hoje sabe transmitir isso como ninguém. Já não é o polonês massudo, com jeito de boxeur, de outros tempos. Todo o tempo o vemos e pensamos na fragilidade, na finitude e na incompletude humanas.
Não longe dali, Bill Clinton desempenhava o papel de bom marido. Seu problema é que a peça é ruim. Na verdade, essa mania norte-americana de saber quem trepa com quem soa um pouco como um teatro do absurdo para o resto do mundo. É uma peça meio pornográfica, uma versão "hardcore" de "Janela Indiscreta".
O voyeurismo, nesse caso, é quase insuportável. Clinton joga com ele: deixa-se entrever, mas não ver. Fala e some. Na hora do aperto, inflaciona a dúvida para que ela se esgote por si mesma, se possível.
Estávamos nisso quando o "Roda Viva" colocou em confronto Zé Celso -franquia Dionisos- e Bárbara Heliodora -franquia Shakespeare.
O texto, porém, estava mais para Tennessee Williams. Zé Celso ensaia uma queixa, uma reconciliação e um brinde. Ela recusa. Ele se refaz da hesitação: chama a crítica de burguesa, perversa e frígida -entre outros. Ela parece uma estátua. Zé Celso quer ganhar a cena pela violência verbal. Bárbara, pelo silêncio.
No fim, aprendemos pouco ou nada sobre Shakespeare. Não importa. Sabemos é que ela conhece Zé Celso intimamente e explora seus pontos fracos com desenvoltura. Os ataques do diretor são terroristas, como se ele aspirasse a "estraçalhar" a velha senhora (um vício de ator é superestimar o domínio de cena e julgar que ele, sozinho, lhe dá vantagem no debate).
Quando optou pelo teatro, em lugar do argumento, Zé Celso abriu a Bárbara a hipótese do silêncio (também contra o argumento). Não havia debate, mas teatro. E, em sua expressão, Bárbara respondia a cada ataque: "Assim é se lhe parece".
Existe aí uma simetria curiosa. Zé Celso faz o papa, em "Ela". Mas na segunda-feira ele representava Fidel. Bárbara Heliodora, tida como ditadora crítica, representava o papa: a imobilidade, o silêncio.
Estranha inversão. O teatro, assim como a crítica, pode ser um exercício de poder. O incauto que chega ao Oficina está sob o poder do diretor. É claro que isso enfraquece o resultado final, pois estamos num território de convenção: o estupro é consentido, um jogo de faz de conta.
No "Roda Viva", a convenção inexistia (salvo engano), portanto criou-se um duelo real entre duas verdades muito distantes.
Se é verdade que Zé Celso, ao contrário de Fidel, impediu Bárbara Heliodora de dizer seu script, em troca fez o que não queria: revelou uma atriz capaz de roubar a cena de um ator experiente.
Nesse programa único, não deixa de ser significativo que Zé Celso talvez tenha realizado o teatro com que parece sonhar: uma festa em que os sentidos são despertados pelo intelecto. Mas para fazê-lo teve de ceder o papel de honra à velha desafeta.
O "Roda Viva" de segunda mostrou o teatro como arte viva, em contraste com a xaropada imitativa que, pouco antes, a Globo punha no ar. Será assombroso ver isso no teatro.



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