São Paulo, terça-feira, 30 de abril de 2002

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ARTECIDADEZONALESTE

Largo da discórdia


Artista americano renega obra que abriga sem-teto no Glicério; evento em São Paulo termina neste domingo


IVAN FINOTTI
DA REPORTAGEM LOCAL

Um dos projetos de intervenção urbanística mais polêmicos da mostra artecidadezonaleste foi renegado por seu artista. Trata-se de uma espécie de contêiner translúcido, quase transparente, instalado sob o viaduto do largo do Glicério, cuja função seria se tornar um ponto de encontro para os sem-teto da região, onde poderiam tomar banho, usar o sanitário e lavar roupas.
A obra, que começa a ser desmontada hoje, foi concebida pelo americano Vito Acconci, mas o artista não reconhece sua assinatura no projeto realizado. "Meu projeto não tem nada a ver com o que foi construído. Colocaram meu nome lá, mas não é meu", afirmou Acconci, por telefone, de seu estúdio em Nova York.
A razão da discórdia é mais arquitetônica e estética do que conceitual. Na obra original, uma espécie de túnel em ziguezague subia até o viaduto. Na prática, o projeto foi simplificado para o formato de um caixote. Durante a mostra, o desenho original ficou afixado em um pilar do viaduto.
"Não houve tempo de realizar o projeto, que chegou a nós praticamente no dia da abertura do evento", diz o curador da mostra, Nelson Brissac Peixoto.
"Acconci é um artista muito sensível e está um tanto confuso. Ao fim da exposição, irei encontrá-lo pessoalmente, levarei fotos e acho que ele vai entender que o conceito dele continua lá", afirma Ary Perez, coordenador do artecidadezonaleste.
Perez lembra que o projeto do viaduto não foi o primeiro desenvolvido por Acconci. "Havia outra obra, que não pôde ser realizada porque o local foi ocupado depois. Acconci teve de fazer outra, e não deu tempo de executá-la."
Para Brissac, a obra pode ser vista como uma colaboração entre Acconci e o artecidadezonaleste. "Todo esse processo de mudança de local faz com que seja muito complexo e difícil para o artista, em Nova York, acompanhar tudo. O que fizemos foi um básico, de modo que no futuro possamos negociar para que o protótipo seja produzido."

Tiro e facada
Diversas polêmicas acompanharam a obra renegada de Acconci no Glicério. Entre elas, as paredes quase transparentes que expunham os sem-teto e a violência da região, que chegou a invadir a obra em algumas ocasiões.
No caso da transparência -concebida para não mascarar a condição dos usuários, criando uma privacidade de que não dispõem-, a idéia foi bem recebida pelos moradores de rua. "Em geral, é o contrário. Veja o albergue municipal do Glicério, em frente à obra do americano. Parece uma prisão. A tendência é esconder o lado podre da sociedade. Acho o projeto interessante e inovador", diz o sem-teto Ricardo Corrêa, 28.
A violência, comum na área, também chegou à obra de Acconci. Nos primeiros dias da mostra, relatam os moradores, uma briga iniciada dentro do contêiner acabou em tiros num bar próximo. Em outra ocasião, uma senhora de idade esfaqueou um garoto que furou a fila para o banho.
"Claro que não foi o projeto que trouxe isso. O problema de violência faz parte do cotidiano do Glicério", diz o coordenador Ary Perez. "Sabemos que acaba acontecendo uma disputa de liderança, mas nossa participação nisso foi muito tênue. Tentamos não intervir nessa dinâmica própria, que já existia na região."
Um movimento liderado pelos próprios sem-teto buscou tornar o local mais amistoso. Há três semanas, um rapaz foi levado à polícia pelos próprios sem-teto após ter sido flagrado bolinando uma menina. E, na quinta passada, foram expulsos alguns garotos que cheiravam tíner no local.
Segundo Perez, cerca de 3.000 pessoas passaram pela obra.


artecidadezonaleste - mostra com 26 intervenções urbanas. Onde: Torre Leste do Sesc Belenzinho (av. Álvaro Ramos, 991, SP) e outros oito locais; informações pelo tel. 0800-771-1132. Quando: de ter. a sex., das 14h às 21h; sáb. e dom., das 10h às 17h. Até domingo (algumas obras começam a ser desmontadas hoje). Quanto: grátis. Patrocinador: Petrobras.



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