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NELSON ASCHER
Herrar é umano
A única maneira de evitar a repetição dos erros é entender suas causas e sua lógica
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ABORDEI , em minha última coluna, o massacre no campus
de uma universidade americana e suas respectivas interpretações. Abri o texto relatando que o tiroteio ocorrera na terça-feira anterior. Um leitor alerta observou, no
entanto, que fora na segunda-feira.
Ele tinha razão.
Já convivo há tempo suficiente
com minha memória para conhecer
suas (poucas) virtudes e (crescentes) limitações. Ela ainda funciona
direito quando se trata de estabelecer uma seqüência de eventos encadeados. Por exemplo: embora não
me lembre do ator que protagonizou
tal ou qual filme, uma vez que principie a revê-lo, recordo logo as próximas cenas. (Que isso ocorra cada vez
mais freqüentemente com filmes
que não vi é outra história e revela o
caráter repetitivo do cinema atual.)
Quanto a datas, porém, e coisas similares, prefiro conferir. Foi o que
fiz.
Daí minha surpresa ao ser alertado a respeito do erro. Após constatá-lo, eu poderia, é claro, argumentar
que, numa coluna opinativa ou especulativa, tanto fazia se a chacina
tivesse sido perpetrada um dia antes
ou depois. Como, porém, diria Gertrude Stein, um erro é um erro é um
erro... E a única maneira de evitar-lhe a repetição é entender suas causas e lógica. Ainda mais porque, num
meio de comunicação de massas, os
erros se reproduzem. Mesmo quando devidamente corrigidos, eles
crescem, se multiplicam, criam raízes no sistema. O modo como se repetem e perpetuam assemelha-se ao
processo de envelhecimento das células de um organismo.
Meu erro se desenrolou assim: eu
sabia que o fato sucedera na semana
anterior (e poderia, aliás, ter começado o texto dizendo "semana passada", se, por razões estilísticas, não
quisesse mais precisão). Como minha rotina é uniforme semana afora,
não tenho muito com o que associar
eventos deste ou daquele dia. Acessei, portanto, os arquivos da Folha,
vi a data em que a notícia saíra no
jornal e apresentei-a como sendo a
do evento. Mas todo leitor não sabe
que, se algo aconteceu num dia, o
jornal o noticia apenas no seguinte? Bom, é assim que era uma década atrás, até os anos 90, quando,
para alguns, se tornou um hábito
ler a imprensa na internet.
Faz anos que já não folheio sistematicamente a versão impressa
dos periódicos, pois me habituei às
versões on-line que noticiam tudo
quase na mesma hora em que as
coisas acontecem. Nesse ínterim,
desacostumei-me de dar mentalmente o intervalo costumeiro de
um dia entre o noticiado e o noticiário. Troquei a velha automação
pela nova e, na minha cabeça, confundiram-se o noticiário on-line,
no qual eu tomara conhecimento
do massacre, e a versão eletrônica
do jornal que, guardada nos arquivos virtuais, reproduz a impressa.
Não que tal explicação me inocente. Ela só mostra que novas tecnologias predispõem a erros previamente inimagináveis.
Assim como não há modo de reduzir a zero os acidentes de avião
(muito menos os de automóvel),
tampouco se pode sonhar com
uma ausência total de erros nem
nos meios de comunicação nem no
intercâmbio de informações em
geral. Quem conta um conto, quer
queira, quer não, aumenta, subtrai,
multiplica e/ou divide pelo menos
um ponto. Eis porque, além de examinar os erros, é também essencial
avaliá-los, quer dizer, estabelecer
sua importância relativa.
Gente que nunca pôs os pés numa Redação vê intencionalidade
manifesta em erros que se explicam pela escassez daquilo que, em
contextos tais, é o mais raro dos
bens: o tempo.
O número de pessoas que lida
com cada notícia contribui igualmente para introduzir equívocos
na sua transmissão: é o que os comunicólogos chamam de "ruído".
E, nesse caos dinâmico, cada jornalista ajusta as prioridades segundo
suas luzes: caso eu entreviste um
dia o presidente, darei mais atenção às palavras que diga do que à
cor de sua gravata.
Agora, se equivocar-se acerca de
uma gravata não implica ter voluntariamente falseado ou deturpado
as palavras, insistir, diante das evidências em contrário, num erro
qualquer costuma ser indício de
mentalidades que, carentes ou sequiosas de verdades absolutas, lidam mal com as incertezas onipresentes de nossa condição. Querer
acertar sempre que possível, anseio humano (ou mais), subjaz tanto ao aperfeiçoamento individual
quanto ao acúmulo do conhecimento. O desejo de, ignorando críticas e refutações, estar perpetuamente certo constitui, todavia, seu
exato oposto e é melhor deixá-lo
para a divindade ou, onde imperem, para os déspotas e partidos
únicos.
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