São Paulo, segunda-feira, 30 de abril de 2007

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NELSON ASCHER

Herrar é umano


A única maneira de evitar a repetição dos erros é entender suas causas e sua lógica

ABORDEI , em minha última coluna, o massacre no campus de uma universidade americana e suas respectivas interpretações. Abri o texto relatando que o tiroteio ocorrera na terça-feira anterior. Um leitor alerta observou, no entanto, que fora na segunda-feira. Ele tinha razão.
Já convivo há tempo suficiente com minha memória para conhecer suas (poucas) virtudes e (crescentes) limitações. Ela ainda funciona direito quando se trata de estabelecer uma seqüência de eventos encadeados. Por exemplo: embora não me lembre do ator que protagonizou tal ou qual filme, uma vez que principie a revê-lo, recordo logo as próximas cenas. (Que isso ocorra cada vez mais freqüentemente com filmes que não vi é outra história e revela o caráter repetitivo do cinema atual.) Quanto a datas, porém, e coisas similares, prefiro conferir. Foi o que fiz.
Daí minha surpresa ao ser alertado a respeito do erro. Após constatá-lo, eu poderia, é claro, argumentar que, numa coluna opinativa ou especulativa, tanto fazia se a chacina tivesse sido perpetrada um dia antes ou depois. Como, porém, diria Gertrude Stein, um erro é um erro é um erro... E a única maneira de evitar-lhe a repetição é entender suas causas e lógica. Ainda mais porque, num meio de comunicação de massas, os erros se reproduzem. Mesmo quando devidamente corrigidos, eles crescem, se multiplicam, criam raízes no sistema. O modo como se repetem e perpetuam assemelha-se ao processo de envelhecimento das células de um organismo.
Meu erro se desenrolou assim: eu sabia que o fato sucedera na semana anterior (e poderia, aliás, ter começado o texto dizendo "semana passada", se, por razões estilísticas, não quisesse mais precisão). Como minha rotina é uniforme semana afora, não tenho muito com o que associar eventos deste ou daquele dia. Acessei, portanto, os arquivos da Folha, vi a data em que a notícia saíra no jornal e apresentei-a como sendo a do evento. Mas todo leitor não sabe que, se algo aconteceu num dia, o jornal o noticia apenas no seguinte? Bom, é assim que era uma década atrás, até os anos 90, quando, para alguns, se tornou um hábito ler a imprensa na internet.
Faz anos que já não folheio sistematicamente a versão impressa dos periódicos, pois me habituei às versões on-line que noticiam tudo quase na mesma hora em que as coisas acontecem. Nesse ínterim, desacostumei-me de dar mentalmente o intervalo costumeiro de um dia entre o noticiado e o noticiário. Troquei a velha automação pela nova e, na minha cabeça, confundiram-se o noticiário on-line, no qual eu tomara conhecimento do massacre, e a versão eletrônica do jornal que, guardada nos arquivos virtuais, reproduz a impressa. Não que tal explicação me inocente. Ela só mostra que novas tecnologias predispõem a erros previamente inimagináveis.
Assim como não há modo de reduzir a zero os acidentes de avião (muito menos os de automóvel), tampouco se pode sonhar com uma ausência total de erros nem nos meios de comunicação nem no intercâmbio de informações em geral. Quem conta um conto, quer queira, quer não, aumenta, subtrai, multiplica e/ou divide pelo menos um ponto. Eis porque, além de examinar os erros, é também essencial avaliá-los, quer dizer, estabelecer sua importância relativa.
Gente que nunca pôs os pés numa Redação vê intencionalidade manifesta em erros que se explicam pela escassez daquilo que, em contextos tais, é o mais raro dos bens: o tempo.
O número de pessoas que lida com cada notícia contribui igualmente para introduzir equívocos na sua transmissão: é o que os comunicólogos chamam de "ruído". E, nesse caos dinâmico, cada jornalista ajusta as prioridades segundo suas luzes: caso eu entreviste um dia o presidente, darei mais atenção às palavras que diga do que à cor de sua gravata.
Agora, se equivocar-se acerca de uma gravata não implica ter voluntariamente falseado ou deturpado as palavras, insistir, diante das evidências em contrário, num erro qualquer costuma ser indício de mentalidades que, carentes ou sequiosas de verdades absolutas, lidam mal com as incertezas onipresentes de nossa condição. Querer acertar sempre que possível, anseio humano (ou mais), subjaz tanto ao aperfeiçoamento individual quanto ao acúmulo do conhecimento. O desejo de, ignorando críticas e refutações, estar perpetuamente certo constitui, todavia, seu exato oposto e é melhor deixá-lo para a divindade ou, onde imperem, para os déspotas e partidos únicos.


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