São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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DVD/LANÇAMENTO

Coleção abarca pelotão de frente do cinema francês

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

O lançamento marca, antes de tudo, a estréia de um novo selo: o Magnus Opus larga, amanhã, nas pistas do ainda incipiente mercado brasileiro de DVDs, no ritmo (diligente) do pacote "Tour de France". Uma "Volta da França" que traz o pelotão de frente do cinema francês da primeira metade do século 20 (com exceção dos hors-concours Abel Gance e Jean Renoir) às voltas com a (suposta) essência da arte cinematográfica.
Essência que, no caso de Jean Epstein, por exemplo, se confunde com a própria noção de modernidade. Em "A Queda da Casa de Usher" (1928), partindo de um clássico de Edgar Allan Poe, ele contempla a história do aristocrata que aprisiona em um retrato a vida da mulher. A metáfora da pintura como embalsamamento, como forma de exorcizar o tempo. O cinema, para Epstein, era a antítese disso: antes de tudo um teórico, via sua essência na "fotogenia do imponderável".
Um instante sensório e seu esvaecimento igualmente potente: o conceito de Epstein se associa à própria experiência temporal da modernidade, ao "esvaziamento do presente" que nela diagnosticou a filosofia. O problema é que, para traduzir sua teoria, o cineasta, como era comum aos vanguardistas, apostou alto demais nos efeitos de trucagem. Hoje, essa mania parece ter sobrevivido melhor em filmes cujas trucagens foram usadas de forma mais despretensiosa, a exemplo do clássico dadaísta "Entr'acte" (1924).
Aqui nosso "tour" ganha ares de corrida maluca. Concebido como um "entreato para as imbecilidades cotidianas e a vida monótona" por celebridades modernistas como Francis Picabia, Erik Satie, Marcel Duchamp e Man Ray, "Entr'acte" fez sua conturbada sessão de estréia no intervalo de uma apresentação de balé. Sessão relatada, em entrevista que vem de bônus no DVD, pela zelosa viúva de René Clair, o diretor do filme -mas o bônus mais precioso é "Guernica", curta de Alain Resnais que acompanha o longa em que Henri Clouzot tenta apreender o virtuosismo de Picasso ("O Mistério de Picasso").
Assim como Epstein, Clair chorou a morte do cinema mudo, mas continuou trabalhando. Sofreu para se adaptar à era do falado, porque não tinha aptidão para dirigir atores e dar profundidade psicológica aos personagens, mas soube investir em suas próprias limitações. Continuou influente -seu "A Nós a Liberdade" (1931) foi referência para o Chaplin de "Tempos Modernos" (1936)-, mas viu sua aura de maior diretor francês ser apagada.
Em dimensão inversamente proporcional, cresceu a lenda Vigo. Mito que um brasileiro ajudou a construir, Paulo Emílio Salles Gomes e sua clássica biografia "Jean Vigo". Jovem cinéfilo, órfão de um jornalista anarquista misteriosamente assassinado, Vigo sobrevive à infância para dedicar a vida (curta e febril) ao cinema. Sua morte projeta o mito do "enfant terrible" para a geração nouvelle vague. A tal ponto que a biografia de François Truffaut sairia em vários aspectos (de percurso e mesmo de estilo) parecida com a de Vigo.
"O Atalante" (1934), seu único longa, está hoje para o cinema francês assim como "Bateau Ivre" de Rimbaud está para a poesia, mas, em sua época, foi incompreendido. O mesmo aconteceu com "As Damas do Bois de Boulogne" (1944), última parada de nosso "tour". Fracasso estrondoso em seu tempo, inaugurou, pelo rigor e o despojamento do estilo de Robert Bresson, uma nova era, a de uma modernidade madura.


TOUR DE FRANCE. Coleção em três edições (azul, vermelha e branca), à venda a azul e a vermelha. Lançamento: Magnus Opus (www.magnusopusdvd.com.br). Quanto: R$ 180 (cada caixa).


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