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Crítica/teatro
Montagens de "Ricardo 3º" conseguem se complementar
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Tempos sombrios estes,
de crimes recentes que
a política infecta, parindo Ricardos aos pares. Sábado
de estréia para a elite branca da
Faap: diante de uma platéia repleta e ilustre, Jô Soares mostra o que aprendeu com Laurence Olivier. Escova seu Shakespeare com vigor, modernizando a linguagem, invertendo
e inventando deixas, deixando
personagens na coxia, mas buscando a clareza com um prólogo inspirado em Henrique 5º.
Aproveita bem assim a enorme boca de cena, deixada livre
pelo "o" de metal da cenografia
high-tech de Aby Cohen e Lee
Dawkins, e dá a primazia para
Glória Menezes, que assume
definitivamente a condição de
grande dama, em uma performance intensa e uniforme.
O que enfraquece, por outro
lado, a função de mestre de cerimônias do protagonista Marco Ricca, um bufão eficiente,
mas que não impõe muito respeito. A vantagem é que divide
o foco, generoso, com uma ousada combinação de gerações e
estilos. Jiddu Pinheiro, como
Richmond, contagia de juventude o palco no final, enquanto
Maria Manoela se responsabiliza com densidade pela primeira cena dramática da peça,
sem sequer se beneficiar da
vulnerabilidade de sua pouca
idade.
Marcos Suchara, que já se
destacou em personagens melodramáticos, tem boa eficácia
cômica no papel de assassino,
enquanto comediantes conhecidos assumem o drama sem
concessões. Denise Fraga, como a Rainha Elisabete, sofre
com delicadeza e despudor,
embora se fragilize demais em
uma dicção pouco eficiente, enquanto Ari França, com o timing cômico na manga quando
é preciso, faz Buckingham com
profunda humanidade. É o
ponto alto da montagem: grotesco e sublime, erudito e popular se combinam para que
Shakespeare seja ouvido, e
quando Edu Guimarães interpela com pontaria certeira políticos na platéia, a mensagem
está entregue.
Outro Ricardo
Mas não só nesse endereço.
Domingo de meio de temporada no íngreme Ágora, com platéia menor, mas igualmente lotada e ilustre, Roberto Lage
apresenta seu Ricardo.
Embora também inspirado
no espaço cênico elisabetano, o
cenário de Sylvia Moreira explora alçapões e painéis deslizantes, tirando partido do estreito com elegante eficiência,
que honra as referências à
Gianni Ratto. De um longo corredor surge Celso Frateschi,
sem nenhum preparo: basta
que rompa a máscara do bufão
em uma brusca mudança de
tom, devorando a delicada rosa
branca em sua mão, e eis o javali sanguinário.
Quem dividirá o palco com o
monstro? Mas Lage não subtrai
nenhuma personagem feminina, e nenhuma se limita a ser
viúva indefesa. Isabel Teixeira
tem a força desesperada das
mulheres do islã, como reforça
a trilha emocionante de Aline
Meyer, e Renata Zhaneta, com
sua dicção marcante, parece
apontar uma Elisabete invulnerável demais até que perca o
prumo com a morte dos filhos e
se reerga para retornar o feitiço
contra Ricardo, consolidado a
leitura feminista da montagem.
Não são as mulheres, no entanto, o único adversário à altura: Lage, na lição brechtiana, tira proveito do coro do povo, e aí
vai se destacando André Frateschi.
Sem alarde, ele conquista o
público pela simpatia e recebe
como Richmond o cetro do pai,
em um emocionante ritual particular. Pena apenas que o resto
do elenco masculino sucumba
a um excesso de formalismo,
que o torna opaco.
Mas não é hora para maldições. Iluminados estes tempos
que geram dois Ricardo 3º
igualmente marcantes, de qualidades complementares. Com
platéias e estratégias diferentes, por luxuosa clareza ou sutileza essencial, compartilham a
mesma busca. Que a peste se
dissipe por ambas as casas.
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