São Paulo, terça-feira, 30 de maio de 2006

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Crítica/teatro

Montagens de "Ricardo 3º" conseguem se complementar

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Tempos sombrios estes, de crimes recentes que a política infecta, parindo Ricardos aos pares. Sábado de estréia para a elite branca da Faap: diante de uma platéia repleta e ilustre, Jô Soares mostra o que aprendeu com Laurence Olivier. Escova seu Shakespeare com vigor, modernizando a linguagem, invertendo e inventando deixas, deixando personagens na coxia, mas buscando a clareza com um prólogo inspirado em Henrique 5º.
Aproveita bem assim a enorme boca de cena, deixada livre pelo "o" de metal da cenografia high-tech de Aby Cohen e Lee Dawkins, e dá a primazia para Glória Menezes, que assume definitivamente a condição de grande dama, em uma performance intensa e uniforme.
O que enfraquece, por outro lado, a função de mestre de cerimônias do protagonista Marco Ricca, um bufão eficiente, mas que não impõe muito respeito. A vantagem é que divide o foco, generoso, com uma ousada combinação de gerações e estilos. Jiddu Pinheiro, como Richmond, contagia de juventude o palco no final, enquanto Maria Manoela se responsabiliza com densidade pela primeira cena dramática da peça, sem sequer se beneficiar da vulnerabilidade de sua pouca idade.
Marcos Suchara, que já se destacou em personagens melodramáticos, tem boa eficácia cômica no papel de assassino, enquanto comediantes conhecidos assumem o drama sem concessões. Denise Fraga, como a Rainha Elisabete, sofre com delicadeza e despudor, embora se fragilize demais em uma dicção pouco eficiente, enquanto Ari França, com o timing cômico na manga quando é preciso, faz Buckingham com profunda humanidade. É o ponto alto da montagem: grotesco e sublime, erudito e popular se combinam para que Shakespeare seja ouvido, e quando Edu Guimarães interpela com pontaria certeira políticos na platéia, a mensagem está entregue.

Outro Ricardo
Mas não só nesse endereço. Domingo de meio de temporada no íngreme Ágora, com platéia menor, mas igualmente lotada e ilustre, Roberto Lage apresenta seu Ricardo.
Embora também inspirado no espaço cênico elisabetano, o cenário de Sylvia Moreira explora alçapões e painéis deslizantes, tirando partido do estreito com elegante eficiência, que honra as referências à Gianni Ratto. De um longo corredor surge Celso Frateschi, sem nenhum preparo: basta que rompa a máscara do bufão em uma brusca mudança de tom, devorando a delicada rosa branca em sua mão, e eis o javali sanguinário.
Quem dividirá o palco com o monstro? Mas Lage não subtrai nenhuma personagem feminina, e nenhuma se limita a ser viúva indefesa. Isabel Teixeira tem a força desesperada das mulheres do islã, como reforça a trilha emocionante de Aline Meyer, e Renata Zhaneta, com sua dicção marcante, parece apontar uma Elisabete invulnerável demais até que perca o prumo com a morte dos filhos e se reerga para retornar o feitiço contra Ricardo, consolidado a leitura feminista da montagem.
Não são as mulheres, no entanto, o único adversário à altura: Lage, na lição brechtiana, tira proveito do coro do povo, e aí vai se destacando André Frateschi.
Sem alarde, ele conquista o público pela simpatia e recebe como Richmond o cetro do pai, em um emocionante ritual particular. Pena apenas que o resto do elenco masculino sucumba a um excesso de formalismo, que o torna opaco.
Mas não é hora para maldições. Iluminados estes tempos que geram dois Ricardo 3º igualmente marcantes, de qualidades complementares. Com platéias e estratégias diferentes, por luxuosa clareza ou sutileza essencial, compartilham a mesma busca. Que a peste se dissipe por ambas as casas.


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