São Paulo, terça-feira, 30 de maio de 2006

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Crítica/erudito

Vengerov faz interpretação no limite sutil da audição

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Dois exemplos da arte do violinista Maxim Vengerov: o primeiro foi uma longa passagem de figuras cromáticas ascendentes e descendentes, tocadas com surdina, sobre um coral de acordes do piano, ao final do "Andante" da "Sonata nº 1" de Prokofiev (1891-1953). Vengerov, capaz de produzir um som incrivelmente intenso e volumoso, também é um virtuose dos "pianissimos", tecendo um véu de notas como se fossem veludo no ar.
Segundo exemplo: uma pequena seqüência melódica no "Prelúdio" op. 34/17 de Shostakovich (1906-75), em que a primeira metade era uma simples sucessão de dois semitons, as notas grudadinhas uma na outra, tocadas em confortável "mezzo-forte", e a continuação era essa mesma figura com a última nota um semitom acima, depois desaparecendo num glissando, tudo interpretado no limite sutilíssimo da audição, mas audível até a última fileira.
Cada compasso do repertório de Vengerov, sábado passado na Sala São Paulo, exibia esse grau de concentração musical. E a concentração correspondia mesmo ao repertório, que incluiu um "Adágio" de Mozart (1756-91) e a "Sonata nº 7" de Beethoven (1770-1827), além dos modernistas russos. Foi um concerto sério, no sentido mais positivo da palavra: real, verdadeiro, feito com cuidado.
Valem os mesmos termos para o pianista Igor Levit, quase inverossímil senhor da música do alto dos 19 anos. Que o próprio Vengerov seja um grande senhor da arte não causa mais espanto a ninguém, mas talvez devesse; aos 31 anos, ele toca com aquela confiança suprema que habitualmente só se vê nos mestres que têm esse tempo de carreira, não de idade.
Isso talvez explique, em parte, sua atividade como embaixador da Unicef, desde 1997. Para quem passa a vida voando de sala de concerto em sala de concerto, tocar paras crianças refugiadas de guerra em Uganda decerto será um modo de alimentar a música. E fazia, então, todo sentido escutar Vengerov num concerto promovido pela Tucca (uma associação para crianças e adolescentes com câncer).
Foi um sério concerto e uma lição rara, naquele plano em que a vida, afinal, atinge a condição de música.
    


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