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Crítica/erudito
Vengerov faz interpretação no limite sutil da audição
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Dois exemplos da arte
do violinista Maxim
Vengerov: o primeiro
foi uma longa passagem de figuras cromáticas ascendentes e
descendentes, tocadas com
surdina, sobre um coral de
acordes do piano, ao final do
"Andante" da "Sonata nº 1" de
Prokofiev (1891-1953). Vengerov, capaz de produzir um som
incrivelmente intenso e volumoso, também é um virtuose
dos "pianissimos", tecendo um
véu de notas como se fossem
veludo no ar.
Segundo exemplo: uma pequena seqüência melódica no
"Prelúdio" op. 34/17 de Shostakovich (1906-75), em que a primeira metade era uma simples
sucessão de dois semitons, as
notas grudadinhas uma na outra, tocadas em confortável
"mezzo-forte", e a continuação
era essa mesma figura com a última nota um semitom acima,
depois desaparecendo num
glissando, tudo interpretado no
limite sutilíssimo da audição,
mas audível até a última fileira.
Cada compasso do repertório
de Vengerov, sábado passado
na Sala São Paulo, exibia esse
grau de concentração musical.
E a concentração correspondia
mesmo ao repertório, que incluiu um "Adágio" de Mozart
(1756-91) e a "Sonata nº 7" de
Beethoven (1770-1827), além
dos modernistas russos. Foi
um concerto sério, no sentido
mais positivo da palavra: real,
verdadeiro, feito com cuidado.
Valem os mesmos termos para o pianista Igor Levit, quase
inverossímil senhor da música
do alto dos 19 anos. Que o próprio Vengerov seja um grande
senhor da arte não causa mais
espanto a ninguém, mas talvez
devesse; aos 31 anos, ele toca
com aquela confiança suprema
que habitualmente só se vê nos
mestres que têm esse tempo de
carreira, não de idade.
Isso talvez explique, em parte, sua atividade como embaixador da Unicef, desde 1997.
Para quem passa a vida voando
de sala de concerto em sala de
concerto, tocar paras crianças
refugiadas de guerra em Uganda decerto será um modo de alimentar a música. E fazia, então,
todo sentido escutar Vengerov
num concerto promovido pela
Tucca (uma associação para
crianças e adolescentes com
câncer).
Foi um sério concerto e uma
lição rara, naquele plano em
que a vida, afinal, atinge a condição de música.
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