São Paulo, terça-feira, 30 de maio de 2006

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FERNANDO BONASSI

Tempo estranho com gente esquisita

Comerciantes venderão à vista, por temor de perderem as parcelas de clientes seqüestrados

CONSIDERANDO que a elite branca, preta, amarela ou vermelha de vergonha do que não fez até agora não abrirá mão de seus anéis de sociólogos e bacharéis de direitos; que os advogados se especializarão nas entrelinhas dos mandados, que os mandatos legislativos se eternizarão com essas imunidades ultrapassadas, que as jogadas do Executivo manterão fechado o cofre dos benefícios para os exercícios dos juros, malas, juras e juízos de uns e outros e que o aumento na área de segurança só ocorrerá nos subsídios às companhias aéreas, no tamanho dos cemitérios, na espessura dos coletes e no calibre das pistolas, é bom ir avisando...
Os miseráveis mal empregados deverão voar agarrados às bolsas cheias de espanto e carteiras vazias de valores em meio aos atentados dos salários pagos pelos empresários. As carteiras assinadas poderão ser falsificadas em nome da estatística comum. Os comuns serão considerados uma ameaça à Segurança Nacional, sendo banidos para a sarjeta do desemprego culpado e culposo. O lazer será uma ferida cauterizada a laser. A sarjeta nem será o último estágio da decadência na rua da amargura.
Os corações serão blindados. Os comerciantes venderão à vista e pelos olhos da cara, por temor de perderem as parcerias e parcelas dos clientes seqüestrados ou chacinados durante os interrogatórios e batidas do crediário. O modelo de gestão dos lucros seguirá sendo o da congestão de alguns acionistas atemorizados.
As cargas roubadas, informantes contratados e adereços pirateados deverão ser engavetados ou enterrados sob sete palmos de terra, para não inspirarem a cobiça das feras ou dos tiras da Receita Federal. A receita dará despesa, e só mesmo os sonhos de padaria seguirão doces e baratos, mas serão tão doces e tão baratos que se tornarão enjoativos para os andarilhos da cidade solitária, deserta e aterrorizada. Pode até ser que o nosso próprio exército seja convocado para nos proteger uns dos outros e uns aos outros, como a si mesmo.
Os guarda-costas mais vivos terão abandonado seus postos de gasolina em meio ao tiroteio dos cegos e viciados em barris de petróleo. A burrice e a insegurança continuarão inversamente proporcionais aos honorários desonrosos pagos aos professores e policiais. Quanto aos marginais, o preço dos pedágios e arrochos será crescente.
A guerra civil será tão civilizada quanto avacalhada, de acordo com a cidadania ou vilania dos agentes econômicos armados de teorias. O estado de sítio será descartado, já que, em teoria, o poder dos latifundiários será sempre maior do que os quereres dos pequenos proprietários. A grande propriedade permanecerá privada e hereditária, herdada em meio ao caos dos maus elementos, como a celebridade, o tédio e o câncer.
A imprensa, a bem da verdade da vendagem, cobrirá os acordos como se fossem polêmicas, as polêmicas como se fossem disputas, as disputas como guerras e as guerras como farras de revistas de fofocas. A juventude excitada terá suas gangues para protestar.
A literatura será abolida, já que um gesto incendiário desses terroristas parece mais convincente do que mil dessas páginas moralistas. Os arrivistas que se aproveitarem dessa oportunidade poderão ser considerados honestos de acordo com as circunstâncias e a contabilidade de suas campanhas apolíticas ou apocalípticas.
Os governistas, oposicionistas e macarthistas salvadores da pátria continuarão acreditando que a melhor defesa é o ataque recíproco, numa sanha de narcisos por congressos de espelhos. O gozo global desse capitalismo manhoso será financiado pelos Estados mais pobres, doentes e acostumados ao sexo promíscuo dessas relações perigosas, provocando essa sensação de impotência nos órgãos sexuais dos animais mais carentes de afeto, escolaridade e serenidade. Apesar do fogo ter sido apagado, toda essa frieza tende a esquentar cada vez mais, já que a brasa continua acesa sob os escombros do susto, mantendo sua luz mortiça e mandando seus recados cifrados. Pode ser que a pena de morte nem seja a pena máxima... Na hora de votar, convém lembrar: a liberdade que se dá aos representantes não é a mesma que se dá um assaltante.

@ - fbonassi uol.com.br


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