São Paulo, quarta-feira, 30 de maio de 2007

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MARCELO COELHO

Correção política em dia de churrasco

Auge do politicamente correto veio numa canção em favor da bolacha de água e sal

NO DOMINGO passado, levei meus dois filhos pequenos a um show de música para crianças, numa casa de espetáculos chamada Tom Brasil. O lugar tem o tamanho de umas dez ou 15 churrascarias de porte médio, com cada centímetro ocupado por mesinhas de boate, em torno das quais se espremem cadeiras e garçons.
Imagine agora que em cada mesinha há, em média, duas crianças com idades que variam de dois a nove anos, e ocasionais bebês de colo, a quem os pais querem acostumar, desde cedo, aos prazeres da música popular sofisticada. Para você achar a mesinha (meu número era o 1.907), carregando bolsas, ursos de pelúcia, casaquinhos e seus donos, é necessária uma boa dose de sangue-frio e organização mental.
Mas você não mais está de posse dessas qualidades: uns dois quarteirões antes de chegar ao teatro, seu carro foi abordado por uma dezena de marmanjos que ficam no meio da rua. No começo, pensei que fossem guardadores de carro, daquele tipo que exige adiantado o pagamento. Nada disso. Já privatizaram os flanelões. Hoje eles estão a serviço dos estacionamentos ali perto, e praticamente forçam o motorista a deixar o carro em suas mãos, parando em fila tripla.
Isso em todo caso é pouca coisa, perto do processo de sair do show: crianças e pais se embolam como uma torcida em fim de jogo, com direito a todo tipo de chiliques e tropeços. Entre a chegada e a saída, deu-se a apresentação de um refinado grupo de música infantil, o Palavra Cantada. Estamos longe do universo histérico de Xuxa e congêneres. Tudo é feito para crianças e pais pensarem sobre o cotidiano, numa linguagem que combina delicados efeitos de percussão e lembranças de ciranda com aquele gênero de canto típico da "vanguarda paulistana", que imita as inflexões da linguagem falada do dia-a-dia.
Quem tem filho em idade pequena já deve ter topado com alguns sucessos de Sandra Peres e Paulo Tatit, disponíveis em CD e DVD. Há uma música muito graciosa sobre um ratinho apaixonado, e outra, falando dos ingredientes da sopa do nenê, que obtêm imediata adesão do público infantil. No meio daquela monstruosa churrascaria musical, algumas coisas do Palavra Cantada começavam contudo a me incomodar. Poucas eram as músicas que não queriam transmitir uma mensagem politicamente correta.
Não estamos mais, é claro, nos tempos em que se faziam canções políticas em louvor de Vargas, Stálin ou Mussolini, que crianças de outros tempos aprendiam junto com os hinos da pátria. Mas acho muito estranho que crianças de quatro ou cinco anos sejam levadas a cantar, como ocorre no show, uma espécie de manifesto contra o trabalho infantil, em que os versos "Criança não trabalha, criança dá trabalho" são entoados num ardor de passeata. Os pais podem achar certo. Só que nenhuma criança, a meu ver, deve incorporar a frase "criança dá trabalho" como se fosse seu próprio discurso. Por definição, ela não sabe disso; numa espécie de ventriloquia, é a fala de seus pais que, nessa música, está sendo levada a repetir.
Mais correção política aparece em outra letra, cujo tema é o excesso de compromissos que uma criança paulistana é forçada a assumir: aula de judô, natação, terapia... A música conclui que crianças foram feitas para empinar pipa, rolar no chão etc. Muito certo. Mas o recado, que se volta evidentemente para os pais, tem algo de contraditório. Fosse para preservar o espírito da infância tradicional, o Palavra Cantada deveria insistir mais em cantigas de ratinhos e fadas em vez de musicar princípios pedagógicos.
O auge do politicamente correto veio numa canção em favor da bolacha de água e sal. Nada de recheio de morango, dizem esses desalmados. Os pais cutucam os filhos, forçam-nos a cantar em coro esse hino a Esparta e ao dentista. Fui cutucar também o meu filho menor. Na escuridão de boate do ambiente, vi que de sua boca escorria um fino fio de chocolate. Um bombom lhe fora administrado para que se mantivesse quieto até o fim do show. "Tu quoque, fili mi!" Era hora de ir embora.
Bons paulistanos, meus filhos estavam tendo as primeiras lições de sobrevivência ética no nosso ambiente: como sempre, trata-se de levar ao máximo o distanciamento entre a prática cotidiana e os princípios que se defendem. Melhor o mundo dos ratinhos.

coelhofsp@uol.com.br


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