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MARCELO COELHO
Correção política em dia de churrasco
Auge do politicamente correto veio numa canção em favor da bolacha de água e sal
NO DOMINGO passado, levei
meus dois filhos pequenos a
um show de música para
crianças, numa casa de espetáculos
chamada Tom Brasil. O lugar tem o
tamanho de umas dez ou 15 churrascarias de porte médio, com cada
centímetro ocupado por mesinhas
de boate, em torno das quais se espremem cadeiras e garçons.
Imagine agora que em cada mesinha há, em média, duas crianças
com idades que variam de dois a nove anos, e ocasionais bebês de colo, a
quem os pais querem acostumar,
desde cedo, aos prazeres da música
popular sofisticada.
Para você achar a mesinha (meu
número era o 1.907), carregando
bolsas, ursos de pelúcia, casaquinhos e seus donos, é necessária uma
boa dose de sangue-frio e organização mental.
Mas você não mais está de posse
dessas qualidades: uns dois quarteirões antes de chegar ao teatro, seu
carro foi abordado por uma dezena
de marmanjos que ficam no meio da
rua. No começo, pensei que fossem
guardadores de carro, daquele tipo
que exige adiantado o pagamento.
Nada disso. Já privatizaram os flanelões. Hoje eles estão a serviço dos
estacionamentos ali perto, e praticamente forçam o motorista a deixar o
carro em suas mãos, parando em fila
tripla.
Isso em todo caso é pouca coisa,
perto do processo de sair do show:
crianças e pais se embolam como
uma torcida em fim de jogo, com direito a todo tipo de chiliques e tropeços. Entre a chegada e a saída, deu-se
a apresentação de um refinado grupo de música infantil, o Palavra Cantada. Estamos longe do universo
histérico de Xuxa e congêneres. Tudo é feito para crianças e pais pensarem sobre o cotidiano, numa linguagem que combina delicados efeitos
de percussão e lembranças de ciranda com aquele gênero de canto típico da "vanguarda paulistana", que
imita as inflexões da linguagem falada do dia-a-dia.
Quem tem filho em idade pequena já deve ter topado com alguns sucessos de Sandra Peres e Paulo Tatit,
disponíveis em CD e DVD. Há uma
música muito graciosa sobre um ratinho apaixonado, e outra, falando
dos ingredientes da sopa do nenê,
que obtêm imediata adesão do público infantil.
No meio daquela monstruosa
churrascaria musical, algumas coisas do Palavra Cantada começavam
contudo a me incomodar. Poucas
eram as músicas que não queriam
transmitir uma mensagem politicamente correta.
Não estamos mais, é claro, nos
tempos em que se faziam canções
políticas em louvor de Vargas, Stálin
ou Mussolini, que crianças de outros
tempos aprendiam junto com os hinos da pátria.
Mas acho muito estranho que
crianças de quatro ou cinco anos sejam levadas a cantar, como ocorre
no show, uma espécie de manifesto
contra o trabalho infantil, em que os
versos "Criança não trabalha, criança dá trabalho" são entoados num
ardor de passeata. Os pais podem
achar certo. Só que nenhuma criança, a meu ver, deve incorporar a frase "criança dá trabalho" como se fosse seu próprio discurso. Por definição, ela não sabe disso; numa espécie de ventriloquia, é a fala de seus
pais que, nessa música, está sendo
levada a repetir.
Mais correção política aparece em
outra letra, cujo tema é o excesso de
compromissos que uma criança
paulistana é forçada a assumir: aula
de judô, natação, terapia... A música
conclui que crianças foram feitas para empinar pipa, rolar no chão etc.
Muito certo. Mas o recado, que se
volta evidentemente para os pais,
tem algo de contraditório. Fosse para preservar o espírito da infância
tradicional, o Palavra Cantada deveria insistir mais em cantigas de ratinhos e fadas em vez de musicar princípios pedagógicos.
O auge do politicamente correto
veio numa canção em favor da bolacha de água e sal. Nada de recheio de
morango, dizem esses desalmados.
Os pais cutucam os filhos, forçam-nos a cantar em coro esse hino a Esparta e ao dentista.
Fui cutucar também o meu filho
menor. Na escuridão de boate do
ambiente, vi que de sua boca escorria um fino fio de chocolate. Um
bombom lhe fora administrado para
que se mantivesse quieto até o fim
do show. "Tu quoque, fili mi!" Era
hora de ir embora.
Bons paulistanos, meus filhos estavam tendo as primeiras lições de
sobrevivência ética no nosso ambiente: como sempre, trata-se de levar ao máximo o distanciamento entre a prática cotidiana e os princípios que se defendem. Melhor o
mundo dos ratinhos.
coelhofsp@uol.com.br
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