São Paulo, sábado, 30 de maio de 2009

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LIVROS

Atiq Rahimi revela uma "outra afegã"

Convidado da Flip, escritor diz como deu voz à sexualidade reprimida das mulheres de seu país, em livro que sairá aqui

"Pedra-de-Paciência" deu a afegão Atiq Rahimi o Prêmio Goncourt 2008; escritor diz que escrever em francês o ajudou a livrar-se de tabus

EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando as tropas americanas e inglesas entraram no Afeganistão, em 2001, uma das prioridades alegadas pelos governos dos dois países era libertar as mulheres da opressão talebã, fosse na forma da burca ou da prisão domiciliar. Quatro anos depois, a poeta afegã Nadia Anjuman, 25, morreu após ser espancada pelo marido.
A história de Nadia, e de tantas outras mulheres afegãs, foi ponto de partida do escritor afegão Atiq Rahimi, 46, radicado desde 1985 na França, para escrever "Syngué Sabour: Pedra-de-Paciência", romance vencedor do Prêmio Goncourt 2008, que a editora Estação Liberdade lança em 5 de junho.
Convidado da 7ª Flip, que acontece em julho, Rahimi conta à Folha que esteve no Afeganistão após a morte de Nadia para saber detalhes da sua família, que se recusou a falar com ele. O escritor foi então à prisão onde estava o marido, que acabara de tentar o suicídio e estava em coma.
"Quando eu o vi deitado, pensei: "se eu fosse uma mulher, me sentaria ao lado dele, para falar de tudo'", diz o autor. "Quis entrar na pele deste homem, que estava paralisado, que não podia fazer nada, mas que escutava tudo. Quis saber o que passaria na sua cabeça de um homem assim, caso sua mulher falasse de suas frustrações, seus desejos etc."
À realidade, Rahimi emprestou o mito afegão da pedra-de-paciência do título, uma pedra mágica que abriga os lamentos de quem a ela se confidencia, até que um dia explode, libertando a pessoa de seus sofrimentos. No romance, tal pedra é um homem ferido na guerra, em estado vegetativo, que recebe os cuidados da mulher. Num crescendo, ela desfia o rosário de sua vida. Rahimi diz que, com a personagem, quis dar outra imagem à mulher afegã.
"[A afegã] é normalmente apresentada como uma mulher reprimida, sem caráter, personalidade, história pessoal etc. Eu mostro que essa mulher é como todas as mulheres do mundo, que tem desejos, frustrações e segredos. É preciso apenas dar-lhes a voz."

Tabus
"Nunca tinha tocado em você assim", diz a personagem de Rahimi, após colocar uma mão dentro da calça do homem, e a outra, entre as próprias coxas. A representação da sexualidade feminina, diz Rahimi, só foi possível porque ele decidiu escrever, pela primeira vez, diretamente em francês:
"A língua maternal, seja persa, inglês ou português do Brasil, ela impõe seus tabus, seus limites. Uma outra língua, adotiva, lhe dá uma certa liberdade. Com o francês, eu me desvencilhei dos tabus, como a minha própria relação com a sexualidade da mulher", afirma.

Afeganistão
Dedicado à memória de Nadia Anjuman, "Syngué Sabour" se passa "em algum lugar do Afeganistão ou alhures", segundo indicação do próprio Rahimi, que divide seu tempo entre Paris e Cabul, aonde retornou somente em 2002.
Lá, dedica-se a seu outro ofício, o de cineasta, ajudando a formar uma nova geração de profissionais de cinema e televisão. Isso, num país que, além das ruínas e da miséria, sofre com a falta de educação.
"Um dos principais problemas do Afeganistão são as guerras sucessivas que ele sofreu", afirma Rahimi. "Elas destruíram a cultura de seu povo, que é o que lhes identidade. As novas gerações não têm identidade. Não têm mais seus mitos, seu imaginário, nada disso existe mais no Afeganistão. As escolas foram reconstruídas, mas não há professores. São os mulás que ensinam as crianças. E isso é muito perigoso."


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