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LIVROS
Atiq Rahimi revela uma "outra afegã"
Convidado da Flip, escritor diz como deu voz à sexualidade reprimida das mulheres de seu país, em livro que sairá aqui
"Pedra-de-Paciência" deu a
afegão Atiq Rahimi o Prêmio
Goncourt 2008; escritor diz
que escrever em francês o
ajudou a livrar-se de tabus
EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL
Quando as tropas americanas e inglesas entraram no Afeganistão, em 2001, uma das
prioridades alegadas pelos governos dos dois países era libertar as mulheres da opressão talebã, fosse na forma da burca ou
da prisão domiciliar. Quatro
anos depois, a poeta afegã Nadia Anjuman, 25, morreu após
ser espancada pelo marido.
A história de Nadia, e de tantas outras mulheres afegãs, foi
ponto de partida do escritor
afegão Atiq Rahimi, 46, radicado desde 1985 na França, para
escrever "Syngué Sabour: Pedra-de-Paciência", romance
vencedor do Prêmio Goncourt
2008, que a editora Estação Liberdade lança em 5 de junho.
Convidado da 7ª Flip, que
acontece em julho, Rahimi conta à Folha que esteve no Afeganistão após a morte de Nadia
para saber detalhes da sua família, que se recusou a falar
com ele. O escritor foi então à
prisão onde estava o marido,
que acabara de tentar o suicídio e estava em coma.
"Quando eu o vi deitado,
pensei: "se eu fosse uma mulher, me sentaria ao lado dele,
para falar de tudo'", diz o autor.
"Quis entrar na pele deste homem, que estava paralisado,
que não podia fazer nada, mas
que escutava tudo. Quis saber o
que passaria na sua cabeça de
um homem assim, caso sua
mulher falasse de suas frustrações, seus desejos etc."
À realidade, Rahimi emprestou o mito afegão da pedra-de-paciência do título, uma pedra
mágica que abriga os lamentos
de quem a ela se confidencia,
até que um dia explode, libertando a pessoa de seus sofrimentos. No romance, tal pedra
é um homem ferido na guerra,
em estado vegetativo, que recebe os cuidados da mulher. Num
crescendo, ela desfia o rosário
de sua vida. Rahimi diz que,
com a personagem, quis dar
outra imagem à mulher afegã.
"[A afegã] é normalmente
apresentada como uma mulher
reprimida, sem caráter, personalidade, história pessoal etc.
Eu mostro que essa mulher é
como todas as mulheres do
mundo, que tem desejos, frustrações e segredos. É preciso
apenas dar-lhes a voz."
Tabus
"Nunca tinha tocado em você
assim", diz a personagem de
Rahimi, após colocar uma mão
dentro da calça do homem, e a
outra, entre as próprias coxas.
A representação da sexualidade
feminina, diz Rahimi, só foi
possível porque ele decidiu escrever, pela primeira vez, diretamente em francês:
"A língua maternal, seja persa, inglês ou português do Brasil, ela impõe seus tabus, seus
limites. Uma outra língua, adotiva, lhe dá uma certa liberdade.
Com o francês, eu me desvencilhei dos tabus, como a minha
própria relação com a sexualidade da mulher", afirma.
Afeganistão
Dedicado à memória de Nadia Anjuman, "Syngué Sabour"
se passa "em algum lugar do
Afeganistão ou alhures", segundo indicação do próprio Rahimi, que divide seu tempo entre Paris e Cabul, aonde retornou somente em 2002.
Lá, dedica-se a seu outro ofício, o de cineasta, ajudando a
formar uma nova geração de
profissionais de cinema e televisão. Isso, num país que, além
das ruínas e da miséria, sofre
com a falta de educação.
"Um dos principais problemas do Afeganistão são as guerras sucessivas que ele sofreu",
afirma Rahimi. "Elas destruíram a cultura de seu povo, que é
o que lhes identidade. As novas
gerações não têm identidade.
Não têm mais seus mitos, seu
imaginário, nada disso existe
mais no Afeganistão. As escolas
foram reconstruídas, mas não
há professores. São os mulás
que ensinam as crianças. E isso
é muito perigoso."
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