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CONTARDO CALLIGARIS
O que é politicamente correto?
Não vou retomar a discussão
(um pouco batida) sobre o
"politicamente correto", ou melhor, vou retomá-la para sugerir
que a gente ouça essa expressão
de um jeito diferente. Mas vamos
com calma.
Sou contra a existência de uma
polícia da linguagem, que circularia pelas nossas frases como a
brigada dos bons costumes circulava pelas ruas de Cabul, açoitando as mulheres sem véu e os homens sem barba.
É claro que não considero que
tudo possa ser dito. Há palavras
que acarretam conseqüências nefastas, mas cuidado: seu sentido e
seu alcance dependem da situação, ou seja, dependem da intenção de quem fala, do lugar que a
pessoa ocupa no momento em
que abre a boca e, sobretudo, do
lugar onde, falando, relega os que
o escutam.
Imaginemos que Severino Cavalcanti, numa roda de padaria,
diga que os homens não chegam
virgens ao casamento (e, portanto, conseguem orientar-se debaixo dos lençóis) porque algumas
mulheres têm vocação para "professoras". É uma piada de última.
Se eu estivesse na roda, não acharia graça, mas nem por isso invocaria a polícia da linguagem: afinal, uma piada nos deixa livres
para rir ou mandar o piadista se
enxergar.
Agora, imaginemos que o presidente da Câmara proponha a
mesma observação numa sabatina (Folha de 3 de maio). Nesse caso, uma das maiores autoridades
da República, além de ludibriar
das professoras, escarnece todas
as mulheres que, antes ou ao lado
do casamento, transaram alguma vez por amor ou por prazer. E
não se trata de uma piada, pois a
desproporção de poder entre piadista e auditório transforma a gozação em abuso. Não há piada
quando não há liberdade para
dar o troco ao piadista.
Politicamente incorreto não é
zombar das mulheres "professoras", é forçar um auditório a rir
da zombaria ou a calar-se.
Outro exemplo. Na terça-feira
retrasada, o presidente Lula comentou que a confusão do momento "é por conta de um cidadão que diz que pegou R$ 3.000,
um cidadão de terceiro escalão".
Podemos achar simpático que o
presidente fale que nem a gente, e,
certamente, Lula usou a palavra
"cidadão" no sentido genérico de
"sujeito". No entanto, numa república, pode haver funcionários,
psicólogos, médicos, engenheiros
ou colunistas de terceiro escalão,
mas os cidadãos são todos (e sempre) de primeiro escalão, ou seja,
dita pelo presidente, a expressão
se torna politicamente mais que
incorreta, ameaçadora.
Periodicamente, em vários países, são propostos e aprovados
projetos de lei para garantir que
nossa fala seja "politicamente
correta". Dizem que se trata de
proibir expressões que denigrem
uma categoria de cidadãos (a
propósito, "denegrir" é um verbo
que deveria ser banido: por que,
se não por um ranço racista, usaríamos "denegrir" (tornar negro)
no sentido de "infamar"? -estou
sendo irônico).
Ora, é possível suspeitar que esses projetos sejam inventados para despistar a atenção, para que
esqueçamos o que é mesmo politicamente incorreto: os abusos verbais impostos por uma classe política que nos desconsidera sem pudor.
Talvez a coisa tenha piorado
nos últimos tempos. Talvez eu seja especialmente intolerante por
praticar uma disciplina na qual
se constata que cada palavra instaura ou mesmo impõe uma relação.
Tomemos o exemplo, banal, da
mentira. Os pais, às vezes, estranham o humor ressentido de suas
crianças depois da morte de um
próximo (uma avó, um tio).
Acontece que os ditos pais, por
pensarem que as crianças não entenderiam ou não deveriam sofrer com a dureza de uma separação irreversível, decidiram mentir: o tio foi viajar e não disse
quando voltará, a vovó, um dia
desses, vai escrever uma carta para a gente.
Mesma coisa quando uma família sofre um baque financeiro
brutal. Os pais não encontram a
coragem de contar seu infortúnio,
temem perder assim o respeito ou
o amor das crianças ou então
acham que as crianças devem ser
poupadas (terão tempo mais tarde para os sufocos da vida); em
suma, os pais decidem mentir. E
logo estranham que as crianças se
tornem sombrias e quase vingativas.
Nesses casos, verifica-se que as
crianças (sempre muito mais
atentas e menos ignaras do que os
adultos imaginam) sabem o que
aconteceu realmente e entendem
a mentira dos pais pelo que ela é:
uma palavra que desconhece e
menospreza a subjetividade delas. Pior, uma palavra que, desconsiderando as crianças, acaba
acuando-as, forçando-as a ficar
para sempre sob tutela, privadas
da verdade.
Uma parte relevante do discurso dos políticos (que não tem nada a ver com o discurso político)
produz o mesmo efeito. Sob o pretexto de nos tratar "com carinho", os políticos se esquecem de
nos tratar como adultos.
Domingo, em São Paulo, por
exemplo, estive numa reunião em
que imaginava que se discutiriam
as dificuldades concretas e complexas de nossa vida social. De entrada, escutei o presidente do PT,
José Genoino, afirmar que o governo adora as CPIs: todas elas, a
começar pela CPI dos Correios.
Decidi que, se era para ser tratado
como criança, eu preferia sair e
jogar com bolinhas de gude no
sol, com meus coetâneos.
@ - ccalligari@uol.com.br
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