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CARLOS HEITOR CONY
Edifício Babilônia
Em sentido figurado,
ela passou à história como cidade maldita, antro de fornicações
ATÉ QUE chegou o dia da mudança -uma batalha que
avançou milímetro a milímetro, segundo a segundo, os carregadores que botavam mãos suadas em
cima dos estofados, a geladeira que
enguiçou na porta e ficou sem sair
nem entrar, o parafuso que armava a
cama -velha e honesta cama de
seus primeiros anos de casado e que
agora seria rebaixada para o quarto
dos objetos inúteis. Pois o parafuso
quebrou dentro da madeira, e a cama teve de ser retirada pela janela,
armada como um esquife, espantando a todos os vizinhos e desocupados que se fincaram o dia todo para
acompanhar as operações. Ele viu a
cama descendo, amarrada como um
ovo de páscoa, os homens da mudança comandando aos berros, os
trancos, as cautelas, sentiu-se profanado. A mulher, a seu lado, também
sentiu coisa igual.
- Olha a nossa cama! Nós não devíamos fazer isso com ela!
- Fazer o quê? Queria que nós a
jogássemos janela abaixo?
- Não. Nós podíamos ter ficado
com ela. Olha que fomos felizes.
- Deixa disso! Vamos botar de lado as superstições. Além do mais, ela
continuará conosco. Quando pudermos, vamos ter a nossa casa em Teresópolis ou em Miguel Pereira, ela
vai servir outra vez.
- "Felizmente não tinham piano"
-foi a hipótese que a vizinhança levantou em clamor unânime. Explicaram que com piano a coisa era
mais complicada ainda, e ele ouviu
pacientemente os cuidados e as cautelas que costumam acompanhar a
operação de mudar um piano de
uma casa para outra.
Não tinham piano, mas tinham a
geladeira, que, ao cair da tarde, ainda
estava empacada na porta. Os homens já tinham feito duas viagens
até o Leblon e voltavam para apanhar as miudezas, os vasos de plantas da mulher, alguns quadros, e a
geladeira lá estava, inarredável, silenciosa, parecia ter inchado, maior
do que era realmente. Foi preciso
um conselho geral em que entraram
a sabedoria e os palpites de todos.
Até que alguém apelou para a ignorância, a força bruta, e a geladeira
afinal passou, deixando um rastro
de arranhões e mutilações.
Mas a geladeira também se ressentira e agora não abria a porta, era
preciso chamar um técnico, talvez o
motor estivesse danificado, uma
canseira a mais.
Só na última viagem, quando, juntamente com a geladeira aos pedaços, cruzou o hall de entrada do novo
prédio, foi que, sem querer, olhou
para cima da porta principal e leu,
em letras douradas, destacadas:
"Edifício Babilônia".
"Diabo. Podia ter outro nome!"
Não precisava espalhar aos ventos
que morava no edifício Babilônia.
Para todo mundo, para a correspondência postal, parentes, amigos e
fornecedores, dava o número do
prédio e do apartamento, bastava,
não precisava acrescentar o nome
que lhe soava como um agouro de
pecado e confusão. Nem mesmo a
mulher, atarefada nas arrumações,
teve tempo de reparar naquilo. Só
muito tempo depois, quando receberam uma cota do condomínio, foi
que ela viu impresso aquele nome.
- Ué? O nome do prédio é Babilônia?
Ele fingiu que também não sabia e
pediu o papel para verificar. Examinou com atenção os impressos, confirmou:
- É.
- Que nome mais esquisito! Por
que Babilônia?
- Ora, não tem importância, já
moramos num edifício Ceará, por
que Ceará? Por que Piauí? Por que
qualquer nome?
- Mas Babilônia? Que história
mesmo é essa de Babilônia?
Ele deu de ombros:
- É o nome de uma cidade antiga.
Deixa isso para lá.
À noite daquele dia, para precaver-se, foi ao dicionário que também
herdara do pai, um velho "Aurélio
Buarque de Holanda", já ensebado
pelo paterno manuseio. Encontrou
a palavra em minúscula: "Babilônia,
singular, feminino, confusão".
Tinha amigos cultos, até mesmo
um escritor que fora seminarista.
Consultou-o pelo telefone:
- Me diz que história é essa de Babilônia.
- Babilônia? Por que você quer
saber?
- É que eu tive uma discussão
com um camarada, e ele teimou que
Babilônia era sinônimo de depravação. Você acha que é?
- Em sentido figurado, é. Juntamente com Sodoma e Gomorra, Babilônia passou à história como cidade maldita, antro de fornicações.
Ele tremeu.
- Fornicações?
- É. Fornicações. Fornicava-se
muito em Babilônia.
E ele tremeu, mais uma vez.
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