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FERNANDO GABEIRA
Notas de um pianista no Titanic
Escrevia umas notas quando alguém parou na minha
frente e perguntou: "O que é isso?". Eram apenas lembranças sobre os celulares na CPI. Eles tocam
muito e com canções diferentes.
Toques marciais, românticos, brigadas de cavalaria, um longo repertório.
As canções nos celulares lembram-me o piano do Titanic. Alguma coisa grande está afundando por aqui e os sobreviventes flutuam entre os destroços com seus
minúsculos botes jurídicos. Talvez
mais do que partidos, toda uma
etapa da política brasileira parece
ir ao fundo em forma de cheques,
ordens de pagamento, transferências.
Ao pianista não cabe analisar.
Apenas imaginar a melodia para
as frases que se sucedem, voluptuosamente. Não seria melhor fazer alguma coisa além de escrever
notas? O problema é que as frases
me fascinam. E desconcentram.
É assim também com as gravações telefônicas. Numa delas, um
publicitário dizia: "Estive naquela cidade, falei com o japonês e o
caipira da Casa Civil". Foi o bastante para que toda a minha experiência em Brasília ganhasse
um sentido; se, um dia, for escrever algo, está aí o título: "Estive
naquela cidade".
- O problema é a língua das
pessoas: ferem mais do que bala.
Esta foi extraída de uma conversa telefônica entre o contador e
seu irmão policial, que queimou
os papéis de Marcos Valério. De
fato, os trabalhos na CPI são às
vezes um tiroteio de línguas ferinas.
Hesito muito em intervir. Em
primeiro lugar, há a questão do
adversário. Quando era aliado do
PT, discutia política com seus dirigentes: quando entrei no PT,
bem ou mal, discutia também; na
oposição, discutia política. Agora
que os dirigentes que aparecem
estão refugiados atrás de uma
teoria jurídica, não há o que discutir.
Quando o secretário-geral do
maior partido de esquerda do
continente afirma que não vai falar publicamente sobre seus bens,
a lógica que rege a discussão política vai para o espaço. Para leitores como eu o texto é este: esqueçam-me, pois estou enviando a
mensagem de que não há mais
política, salve-se quem puder, ou
tiver um bom advogado.
Esta fuga do espaço político para o jurídico, este suicídio intergaláctico, desconcerta-me e coloca
também a questão humanitária.
No passado, fui ferido, e entre os
policiais que me cercaram havia
alguns agressivos e eram os mais
desprezíveis. Afinal estava ferido e
sangrando, que sentido tinha
aquela agressividade?
Escondidos atrás dos advogados, os que aparecem para depor
estão feridos moralmente. Assim
como é insustentável uma postura
agressiva, ser magnânimo, nessas
circunstâncias, também é repulsivo, por supor algum tipo de superioridade.
Um tom objetivo e profissional
precisa ser alcançado, sobretudo
por aqueles que se dedicam o tempo inteiro à CPI. São autoridades
democráticas brasileiras investigando o desvio de dinheiro público. Num país como a China da revolução cultural, os culpados exibiam cartazes pelas ruas e eram
expostos à execração popular.
Em Cuba, eram as reuniões de
repulsa. São descritas no livro de
Raúl Rivero, "Provas de Contato",
que, finalmente, aparece no Brasil. Inspiradas pelos chineses,
eram organizadas pelo Ministério
do Interior. Um casal de cientistas
que tinha o hábito de jogar cartas
até meia-noite foi condenado a
ostentar um cartaz: "Somos porcos burgueses".
As CPIs são vistas por milhões
de pessoas. Deveriam organizar
os fatos de tal maneira que as pessoas compreendessem o que se
passou. Contradições deveriam
esboroar fragorosamente contra
os dados. Um diligente trabalho
de investigação deveria mostrar
um quadro do que se alcançou e
do que se pretende. Isto poderia
estar sendo mostrado ao vivo.
Apesar da atração pelo latim e
pelos documentos escritos, a CPI
poderia ter um grupo de pessoas
trabalhando em rede, organizando os dados, cruzando-os e produzindo as perguntas essenciais para uma nova etapa de investigações.
Existe uma grande tentação de
punir os depoentes no ar. Considerando que há milhões de pessoas assistindo, equivale um pouco às reuniões de repulsa cubanas,
modelo de que deveríamos nos
afastar, os que acham que os fins
não justificam os meios. Lições de
moral, envolvimento de filhos,
mães idosas, ainda que seja com o
intuito de comover, acabam submetendo a pessoa a algo que não
está previsto em nossa lei.
No único momento em que falei
na CPI, para enfatizar este ponto,
percebi, pelos e-mails, que alguns
não gostaram. É natural. Os espectadores em casa pensam o que
querem, falam o que querem entre si. Autoridades democráticas
interrogando suspeitos em rede
de televisão obedecem a um ritual
específico.
Há muitas paixões se desenrolando ao som dos celulares. E,
quando há muita paixão, sempre
se atira em quem lembra os direitos humanos. No fundo, não faz
muita diferença, pois é grande a
tentação de atirar no pianista.
Quando a mulher de Marcos
Valério disse que o sonho dela era
a avalanche passando com o julgamento nos tribunais, pensei: isso faz parte do meu programa mínimo. Mas não é tudo. Quando a
avalanche passar, o Brasil estará
mais maduro, teremos ajustado
as contas com uma nefasta visão
da história. Sem essa de esperança que venceu o medo. Apenas
mais maduro, como a menina do
filme, que, depois de todas as suas
peripécias, pergunta: "Pareço
uma mulher com um passado?".
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